Com a emancipação política do Paraná, em 1853 – o território paranaense pertencia à província de São Paulo –, empresários, pensadores, historiadores e intelectuais trataram de construir uma identidade para o novo estado da Federação. Um dos principais articuladores do movimento, depois intitulado paranismo, foi Romário Martins. Escritor, jornalista e historiador autodidata.
Dr. Francisco Cunha Pereira Filho (07/12/1926 – 19/03/2009) era um desses paranistas. Mas não um paranista tricolor, lembra o escritor Ernani Buchmann, com um adendo: “O termo paranista foi criado pelo ex-governador Bento Munhoz da Rocha Netto”. Pode não ter sido Bento o autor, há uma pequena controvérsia na Academia Paranaense de Letras. Mas, se assim não for, assim fica sendo, porque assim afirmava Dr. Francisco Cunha Pereira Filho, o maior dos paranistas.
Bem mais acima, muito acima do Pico Paraná, Bento Munhoz da Rocha Netto deve ter organizado uma alvorada festiva para receber o senhor todo poderoso da Gazeta do Povo, com direito à fanfarra do maestro Mossurunga, foguetório e um café da manhã posto à moda da Lapa, sem faltar coxinhas de farofa. Ao receber o abraço de Joffre Cabral e Silva, eterno presidente do Clube Atlético Paranaense, Dr. Francisco deve ter dado um passo atrás e, olhando para os sapatos do amigo, conferiu com toda a sua elegância: “Presidente, vejo que o senhor continua o mesmo de sempre. Inclusive com as meias brancas!”
Depois de ter lançado o livro Onde me doem os ossos, Ernani Buchmann recebeu um telefonema de Dr. Francisco: “Gostei muito do seu livro! Especialmente da crônica ‘O país das meias brancas’. O senhor tem razão [senhor era uma palavra que Francisco guardava no bolsinho do paletó de seus bem cortados ternos], uma das paixões de Curitiba são as meias brancas”.
Na crônica, Ernani explica o motivo: “Dá-se que em Curitiba as lojas costumam vender estoques completos de meias brancas masculinas. Não pense o leitor tratar-se de meias grossas, indicadas para algum esporte, como as usadas nas quadras de tênis e nas academias de ginástica. Essas têm saída normal, corriqueira. O mistério é a paixão curitibana pelas meias brancas a compor trajes sociais. É comum notarmos distintos cidadãos, elegantes em seus ternos de apropriados botões, gravatas em acordo com as exigências da moda e, a cobrir-lhes os tornozelos, graciosas meias brancas de fino tecido”.
Que se saiba, Dr. Francisco nunca usou meias brancas. Talvez, num vacilo da mocidade. Porque o jornalista sempre primou pela elegância. Elegante em seus ternos de apropriados botões, elegante no trato pessoal. Era um cavalheiro. E um cavalheiro bonito, de uma beleza de causar inveja – um dos últimos que abriam a porta do automóvel para as senhoras.
Ousadia essa minha, escrever a respeito (e em respeito) de Dr. Francisco Cunha Pereira Filho. Mesmo assim, deixo aqui o meu depoimento acerca daquele homem que não usava meias brancas. No começo dos anos 1970 trabalhei na Gazeta do Povo, de onde fui chamado dois anos depois para assinar a charge editorial do jornal O Estado do Paraná. Na Praça Carlos Gomes, histórico endereço da Gazeta, iniciei com o relançamento do jornal Diário da Tarde, junto com amigos que ainda conservamos. Entre eles, os jornalistas Celso Nascimento, Walter Schmidt e Toninho Vaz, hoje escritor e biógrafo consagrado. Atuava como ilustrador e diagramador da primeira página da Gazeta. Diariamente, ao lado do secretário D’Aquino Borges, fechávamos a capa do dia e uma última missão era sagrada: levar a primeira página para a aprovação do Dr. Francisco, estivesse ele onde estivesse. Junto iam a coluna do Dino Almeida e o editorial, quando uma vírgula poderia ofender a ditadura.
Tempos estranhos, aqueles. Tão estranhos quanto os de agora, quando a Gazeta do Povo ainda carrega com dignidade a cicatriz de um jornal conservador, marcada por um homem que, ao contrário da visão de muitos que passavam ao largo da Praça Carlos Gomes, não usava meias brancas. Muitos esquecem – ou fazem de conta do esquecimento – que antes ou depois dos anos de chumbo a Gazeta do Povo sempre foi um porto seguro para os inconformados com a situação política do Brasil. O último reduto para os desgarrados do sistema. Com Dr. Francisco a esquerda se abrigava sob as asas da tolerância, ganhava o sustento negado pelos generais.
Dr. Francisco não usava meias brancas.
(Crônica revista e ampliada, publicada originalmente nos jornais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná em 20/03/2009)
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