Num desses sábados, num animado almoço com Jaime Lerner e os escritores Deonísio da Silva e Fábio Campana, levamos à mesa o que muito nos assusta: o fantasma da memória. Os lapsos de memória, principalmente quando passamos algum tempo longe da caneta ou da prancheta. O ócio ou a falta de exercícios a nos enferrujar os dedos, com uma agravante para os que ainda precisam catar e juntar palavras.
Quando meninos, a mãe nos dizia que o agrião era um inigualável fortificante para a memória. Aquelas folhas nunca me convenceram, conforme atestavam minhas notas de Matemática. Agora, com a larga soma dos anos, a qualquer lapso de memória me curvo com a culpa de ter comido muito pouco agrião.
Mas do que era mesmo que estava falando? Ah, sim: da ferrugem nos dedos. Quando o ócio pode ser criativo, mas nos deixa mal acostumados. Com preocupantes lapsos de memória. Nesses dias preguiçosos, quando a vida real se apresenta um tanto desfocada, o que nos salva é algum livro posto à parte para essas emergências. Meu último suspiro, a autobiografia de Luis Buñuel, por exemplo. A propósito desses pequenos esquecimentos, o cineasta espanhol confessa que lhe chega a se angustiar quando não consegue se lembrar de pequenas coisas. À medida que os anos passam, a memória antes desdenhada torna-se preciosa: “Chegamos às vezes a mergulhar numa espécie de raiva ao procurar em vão por uma palavra que conhecemos, que está na ponta da língua e se recusa obstinadamente a vir à tona”.
A qualquer lapso de memória me curvo com a culpa de ter comido muito pouco agrião
Buñuel, que na velhice ficou surdo e com a visão tão deficiente que não conseguia mais assistir a seus próprios filmes, nos convence de que podemos até perder outros sentidos, menos a memória: “Uma vida sem memória não seria vida, assim como a inteligência sem possibilidade de expressão não seria inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela não somos nada”.
A sensação atroz da perda de memória remete Luis Buñuel (1900-1983) aos últimos anos de vida de sua mãe: “Quando ia visitá-la, em Zaragoza, onde morava com meus irmãos, às vezes lhe dávamos uma revista, que folheava minuciosamente da primeira à última página. Em seguida, pegávamos de volta a revista de suas mãos para oferecer outra, que na realidade era a mesma. Ela voltava a folhear com o mesmo interesse”.
Apesar das generosas saladas com o agrião colhido no quintal de casa, os últimos anos de minha mãe foram semelhantes. Nas reuniões de família em Nova Trento, ela nos recebia com as festas de sempre, providenciava acomodações, conferia se tinha cobertas suficientes, relatava o cardápio para os dias seguintes, mas logo em seguida trocava os nomes daqueles reunidos à mesa, como se estivesse vendo alguns familiares pela primeira vez.
Será muito difícil esquecer o que vem acontecendo no Brasil nestes últimos anos
À mesa como convém (era esse o título da erudita e elegante coluna de Apicius, pseudônimo do jornalista Roberto Marinho de Azevedo no Caderno B do Jornal do Brasil), naquele almoço de sábado em torno de Jaime Lerner (com a memória sempre afiada), Fábio Campana nos contou do dia em que o escritor Fernando Sabino foi pedir ajuda ao cronista Rubem Braga: “Não sei o que fazer, Fernando. Minha memória anda falhando demais da conta”. Rubem Braga foi sincero: “A minha também. Tinha seguidos lapsos de memória, mas já estou melhor. O que me curou foi um remédio receitado pelo Pedro Nava”. Médico e memorialista, Pedro Nava era tudo aquilo de que o Fernando Sabino precisava. “Que remédio é esse, Rubem? Diz o nome.” “Huumm... não lembro, Fernando! Não estou lembrado. Liga pro Nava que ele te diz o nome desse remédio.”
Ao telefone, Fernando Sabino pergunta para o Pedro Nava: “Doutor, como é mesmo o nome daquele remédio pra memória que você receitou para o Rubem Braga?” Depois de um longo silêncio na linha, Pedro Nava afasta o aparelho para o lado e grita em direção à cozinha: “Rosa! Ô, Rosa! Como é mesmo o nome daquele remédio que eu dei para Rubem Fonseca?”
Para contextualizar o assunto, Deonísio da Silva buscou de sua boa memória aquela célebre frase de Ivan Lessa: “A cada 15 anos, o Brasil esquece o que acontece nos últimos 15 anos”. Pode ser que sim, pode ser que não. Mas será muito difícil esquecer o que vem acontecendo no Brasil nestes últimos anos. Em todo caso, será que alguém ainda lembra o nome daquele remédio da Rosa? Vamos precisar.