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Uma ou duas vinas, eis a questão

Foto: Fernando Zequinão (Foto: )

“Leis são como salsichas; é melhor não saber como são feitas” – a frase do chanceler alemão Otto Von Bismarck (1815-1898) dizia ainda que nunca se mente tanto quanto na guerra, depois das caçadas e antes e depois das eleições – principalmente no Brasil, com as insopitáveis cochiladas do Tribunal Superior Eleitoral.

No que concerne às leis, eleições, caçadas e guerras, concordamos com Bismarck. Apenas um ponto não nos afeta: aqui em Curitiba ninguém faz muita questão de ver como são feitas as salsichas. O que fazemos questão de saber, isto sim, é se o pão vem com uma ou duas vinas. Nesse aspecto somos mais ortodoxos que o frango com polenta de Santa Felicidade.

Se aqui onde a bruma faz a curva as desavenças pessoais giram em torno de uma ou duas vinas, na Europa a salsicha (do latim salsicus, que significa “temperado com sal”) já provocou muito derramamento de sangue, especialmente entre os açougueiros. Em Curitiba, como se sabe, a salsicha (Wurst, em alemão) tem um sentido único no Brasil: é a Wienerwurst, ou salsicha de Viena (Wien) que nos botecos se transformou em “vina”, simplesmente. Ou quando muito, “vina wurst”.

Na Alemanha existem mais de 1,2 mil tipos de vinas, o que explica as tantas guerras entre os saxões para estabelecer a hierarquia das salsichas. Genericamente, podemos dizer que os alemães se dividem entre os que preferem salsicha branca e vermelha, sendo que a única unanimidade entre eles é quanto ao chucrute, pois até com os austríacos existe discordância quanto à origem da Wurst.

Segundo os partidários de Bismarck, originou-se em Frankfurt, em 1487, embora outras cidades reivindiquem esta primazia afirmando que a salsicha, tipo cachorrinho “bassê”, foi criada no fim do século 16 por Johann Georghehner, um açougueiro da cidade de Coburg, que levou o seu produto para Frankfurt para ser vendido. Essa vertente histórica é contestada pelos habitantes de Viena, pois eles defendem a primazia de ter produzido a primeira salsicha argumentando que o termo “Wiener” (de Wien, nome alemão de Viena) é um genitivo da cidade onde ela foi criada.

Assim como Blumenau é a Capital do Chope, Belo Horizonte a Capital dos acepipes de boteco, Salvador a Capital do Acarajé, São Paulo a Capital das Padarias e Brasília a Capital da Propina, Curitiba é a Capital da Vina, incontestavelmente! Com uma ou duas, bons tempos aqueles, quando a cidade se dividia entre os partidários de duas vinas com bastante cheiro verde e aqueles irredutíveis do pão com uma vina e nada mais. Com vina única ou vina dupla, a rivalidade entre essas facções transcendia o Bar Triângulo e o Bar Mignon, dois redutos da Wienerwurst na Rua das Flores. Do balcão onde servem o clássico pernil com verde, o antagonismo respingava na literatura, nas artes plásticas, na política e até no futebol: Bento Munhoz da Rocha Netto se fartava com uma vina e muita conversa, enquanto o guloso do Ney Braga exigia duas vinas e muita sedução; o pintor Guido Viaro pedia “una salsiccia”, enquanto o escultor João Turim “due salsicce”. Paulo Leminski duas das mais tortas, Dalton Trevisan uma e ainda assim cortada em rodelas mínimas. Nas tardes de domingo, o atleticano Sicupira comemorava vitórias com duas vinas e com dois chopes, quando não assistia ao boêmio Zé Roberto brindar seus gols no Alto da Glória com uma vina e dois engradados de cerveja.

Em 1941, Curitiba recebeu a inesperada visita do pai do Mickey. Poucos ficaram sabendo na época – e poucos ainda sabem –, pois não estava prevista a escala de Walt Disney, no roteiro de sua viagem de São Paulo para Buenos Aires. O avião, ao sobrevoar os picos da Serra do Mar no fim da tarde, teve uma ligeira pane e, como o Aeroporto Afonso Pena não existia ainda, desceu na base aérea do Bacacheri e lá pernoitou, para decolar no dia seguinte pela manhã, pois naquele tempo não se realizavam voos noturnos.

Foi assim que Walt Disney passou uma agradável noite rondando a cidade. Ele e sua comitiva, da qual fazia parte a atriz e soprano Grace Moore, hospedaram-se no requintado Grande Hotel Moderno e depois esticaram no Cassino Ahú. Naqueles dias tristes da Segunda Guerra Mundial, ninguém viu o criador da Disneylândia comendo um pão com vina e cheiro verde na Rua XV de Novembro. Se essa escapada gastronômica de Walt Disney tivesse acontecido, mais uma polêmica entre os jornalistas Aramis Millarch (“Duas vinas!”) e o fotógrafo Cid (“Uma vina!”) restaria para a eternidade.

Fossem ainda vivos e se desentendendo pela internet, Millarch e Destefani pelo menos haveriam de concordar que aquela democrática Curitiba – com uma ou duas vinas – agora compartilha a ração dos néscios e teimosos. Coxinha ou mortadela, uma ou outra, não há opção mais intragável em tempos assim esquisitos.

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