Esse episódio do jornalista William Waack é exemplar. Ninguém está livre de cometer uma gracinha duvidosa e, com isso, perder o pescoço na guilhotina das redes sociais. Se todos falassem em público o que dizem em privado, o mundo animal seria o ideal politicamente correto.
Todo cuidado é pouco, e não é de hoje. Não faz muito tempo 12 charges publicadas por um jornal dinamarquês provocaram a ira do povo islâmico, que prometeu passar os engraçadinhos no fio da espada. Assim como fizeram com editores e cartunistas do jornal de humor Charlie Hebdo. Dois terroristas entraram na redação do semanário francês e fuzilaram covardemente 12 jornalistas e cartunistas. Entre eles Wolinski, um dos maiores cartunistas de todos os tempos. Foi quase o mesmo que entrar no Museu d’Orsay e destruir com uma bomba um punhado de obras dos impressionistas.
A intolerância não é um privilégio de radicais islâmicos. Em 1963, o jornal Última Hora, de São Paulo, publicou uma charge que, de certa forma, foi uma das sementes da revolução que viria no ano seguinte. Foi num fim de semana nervoso. Naquele domingo, o Santos de Pelé iria decidir o campeonato paulista. Mesmo assim, dias antes os craques foram rezar pela vitória no Santuário de Nossa Senhora Aparecida. O que provocou a Última Hora a estampar na sua primeira página o tamanho da fé santista. Para ilustrar a manchete, o editor Álvaro Paes Leme encomendou uma ilustração ao chargista Otávio, com os jogadores ajoelhados e rezando a Nossa Senhora Aparecida. Seria até uma charge edificante, não fosse um detalhe: Otávio carregou o traço nos lábios, deixando a virgem com a fisionomia do Pelé. Uma santa beiçuda, mas o desenho não resultou desrespeitoso. Mesmo porque a imagem de Nossa Senhora Aparecida é negra, com o paradoxo de possuir feições e traços de um branco.
O primeiro sintoma da estupidez é o mau humor. Quando a edição dominical da Última Hora chegou às bancas do interior paulista, já na noite de sábado os vigários e devotos radicais passaram a telefonar e dirigir insultos aos editores, que imediatamente trocaram a ilustração na edição da capital.
Poucos foram os que viram a charge de Otávio da primeira edição. Entretanto, foi o que bastou para correr o boato de que o jornal comunista que apoiava Jango Goulart teria estampado uma Nossa Senhora Aparecida com os pés de bode, as mãos do capeta e as feições de uma negra devassa. O jornal foi destruído, carros de reportagem foram incendiados e as senhoras marchadeiras saíram às ruas de São Paulo pedindo o pescoço dos ímpios de Jango Goulart.
No verão de 1970, em Santa Catarina, tomei coragem e comuniquei ao meu pai que estava de mudança para Curitiba: “Vou ser cartunista!” “Cartunista? O que vem a ser isso?” – ele perguntou, para completar: “Seja um bom advogado, é mais seguro!” Naqueles anos da ditadura era uma atividade desconhecida – chamar de profissão seria um exagero, pois eram raros o que viviam do risco – que só existia na imaginação de quem lia o Pasquim, onde um punhado de irreverentes desenhistas e escritores desafiava a censura generalizada (dos generais) e civilizada (dos civis). Um dos poucos que exerciam aquela profissão de risco era Millôr Fernandes, que em resposta às ameaças sofridas respondia com mordacidade à pressão da mordaça: “Fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar!”
Muito aprendi e pouco amealhei nos meus quase 45 anos de jornalismo, onde entrei pela porta dos fundos. Profissão de risco, que de certa forma justifica o desejo de meu pai em me ver um bem sucedido advogado. O que muito se amealha, desenhando ou escrevendo, são os desafetos. De esquerda e de direita. Principalmente os governistas.
Não sem uma certa frustração ao aspirante a herói, confesso que na ditadura militar nunca fui intimado pela Polícia Federal. Padecemos, isso sim, com a autocensura. Aquele necessário processo de pensar duas vezes e analisar com o editor os prós e os contras na abordagem de assuntos relacionados com farda, toga e batina. Em todo esse tempo de estrada, aprendi e passo adiante: com religião e raça, melhor não fazer graça.
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