Na narrativa bíblica, os pecados do povo judeu eram expiados por meio do sacrifício de um animal inocente, como uma ovelha ou um bode. O bode sacrificado era o bode expiatório, que carregava a culpa alheia. Há quem pretenda, hoje, fazer da Lava Jato o bode expiatório do 8 de janeiro.
O contexto é conhecido. No julgamento que anulou a condenação de Lula, no início de 2021, o Ministro Barroso resumiu o filme da reação da corrupção. Começa com a mudança da legislação e da jurisprudência, avança para a demonização de procuradores e juízes e termina com os esforços para sequestrar a narrativa e cooptar a imprensa a fim de mudar o passado.
É evidente que todo trabalho pode ser criticado e aperfeiçoado. Contudo, na esteira da ascensão de Lula à presidência, cresce a profusão de críticas absurdas, ilógicas ou de má-fé contra a Lava Jato, encharcadas de viés ideológico ou sem qualquer preocupação com a verdade, a lógica e a coerência.
Críticos de supostos excessos da operação que alegavam defender os direitos humanos, antes chamados de “garantistas”, aplaudem a prisão em flagrante com base em um auto de prisão despido de qualquer individualização de conduta, genérico, contra investigados pela invasão dos prédios dos três Poderes.
Todos os criminosos devem ser punidos com o rigor da lei e os atos do 8 de janeiro foram gravíssimos, conforme já disse aqui. O que chama a atenção é a hipocrisia e a incoerência de muitos que - agora fica claro - nunca militaram por direitos, mas sim por interesses político-partidários travestidos de discurso jurídico.
Na esteira da ascensão de Lula à presidência, cresce a profusão de críticas absurdas, ilógicas ou de má-fé contra a Lava Jato, encharcadas de viés ideológico ou sem qualquer preocupação com a verdade, a lógica e a coerência
No último dia 15 de janeiro, foi publicada pela Folha de S. Paulo entrevista do pesquisador Fábio de Sá e Silva em que afirmou que o “ataque golpista tem digitais da Lava Jato”. O estudioso afirmou ver “uma linha de continuidade” entre os dois eventos.
A ideia repercutiu e foi comentada pelo procurador da república Helio Telho: “militantes empenhados em lavar biografias sujas de corrupção e em reescrever a história segundo seus interesses políticos, disfarçados de pesquisadores, tentam associar os atos golpistas de agora às ações de combate ao maior esquema corrupto do país, que foram sepultadas há anos”.
Li a entrevista de Fábio de Sá e seu artigo publicado na Law and Society Review em outubro de 2021. A partir do exame de cerca de 750 posts e seus comentários, feitos nas mídias sociais entre o começo de 2017 e o de 2019, dentre os quais estavam 51 posts meus, o pesquisador faz uma série de inferências que se aproximam do absurdo.
O primeiro argumento do pesquisador é de que, diante de reveses, a Lava Jato subiu o tom contra os tribunais. Um desses momentos, em particular, foi o do indulto do presidente Michel Temer que perdoava 80% da pena dos condenados por corrupção. Além disso, o pesquisador aponta que em diversos momentos busquei envolver a sociedade no combate à corrupção.
A partir disso, e com base naqueles 51 posts, pasmem, o pesquisador conclui que a Lava Jato fomentou a indisposição da sociedade contra os poderes instituídos, em especial o Supremo e o Congresso. Foi na época das críticas ao indulto dado por Temer que, segundo o pesquisador, começou a surgir o discurso de intervenção militar.
Há uma série de erros elementares de lógica aí. Primeiro, o pesquisador não explica a relação de causalidade que estabeleceu entre, de um lado, críticas republicanas contra decisões das instituições, que são manifestações democráticas – e em momento algum ele faz juízo de valor sobre a forma ou conteúdo das críticas –, e, de outro lado, ataques antidemocráticos a instituições ou a ideia de intervenção militar.
É impossível estabelecer essa relação sem examinar o conteúdo das manifestações dos atores da operação Lava Jato, o que o pesquisador não fez. E se tivesse feito, não conseguiria estabelecer a relação que aponta. Como querer culpar algo democrático, ainda que uma firme crítica, por uma reação antidemocrática de outrem? Não acredito que o pesquisador pretenda abolir o direito à crítica sobre a atuação de autoridades.
Além de não apontar nenhum erro material nas manifestações, é curioso como o pesquisador coloca sobre os meus posts críticos a decisões ou atos de Brasília a responsabilidade pela indignação contida nos comentários, ao invés de colocá-la sobre o próprio sistema de impunidade ou sobre as próprias decisões ou atos criticados que suscitaram a indignação das pessoas.
Se a imprensa noticiar de modo crítico um grande escândalo e a população tomar as ruas e parte do povo cometer excessos ou até crimes, o pesquisador igualmente colocará a responsabilidade sobre a imprensa por ter divulgado e opinado criticamente sobre o escândalo? Eu não acredito que faria isso, mas fez algo idêntico contra a Lava Jato.
Segundo, há um evidente problema de amostra. A Lava Jato era composta de um número de procuradores que variava entre 15 e 20, mais delegados, auditores, julgadores e servidores de várias instituições. Só na força-tarefa do Ministério Público eram constantes as entrevistas, posts e palestras de muitos procuradores.
Caso se tome só as minhas manifestações numa das redes sociais, o Twitter, criado logo antes da Lava Jato, é preciso notar que fiz até hoje mais de 14 mil tuítes, mais de mil por ano. E o pesquisador selecionou 50 posts de um procurador, num intervalo de dois anos, mais uma vez, sem analisar seu conteúdo, para inferir uma relação de causa e efeito entre os posts, seus comentários e ações antidemocráticas anos depois.
O pesquisador não tomou em conta, por exemplo, as numerosas manifestações de vários procuradores da operação, inclusive eu, reconhecendo o trabalho dos tribunais superiores, em especial dos relatores da Lava Jato, nas quais defendemos a democracia e o rule of law, nas quais pregamos a importância das instituições e nas quais afirmamos que soluções autoritárias não eram uma opção.
Há ainda um terceiro problema. Caso se tomem os comentários aos meus tweets, e aliás ao da maior parte das pessoas que tuítam sobre corrupção ou política, grande parte são feitos por haters. O que esses haters falam, em geral, não expressa o ponto de vista dos autores dos posts, muito menos pode se dizer que os autores dos posts são causadores dos comportamentos odiosos dos haters, praticados por palavras ou eventuais ações.
Contudo, não é só isso. O pesquisador fecha os olhos para o fato de que, em paralelo às minhas manifestações, e para além dos servidores públicos que trabalhavam na Lava Jato, centenas de políticos, jornalistas, professores e formadores de opinião se manifestavam diariamente sobre o caso, inclusive criticando o trabalho, fosse o da Lava Jato, fosse de políticos ou dos tribunais superiores.
A conclusão de Fábio de Sá é parecida com a do astronauta que olha para a Terra com um telescópio e, vendo maratonistas correrem sobre ela, coincidentemente sobre a linha imaginária do equador, atribui a eles o movimento de rotação do planeta. É a conclusão daquele que quer responsabilizar os fabricantes dos ônibus, ou o criador do automóvel, por terem contribuído para os atos de 8 de janeiro.
O argumento do pesquisador é um clássico non sequitur, em que se estabelecem premissas e conclusões, mas as conclusões não decorrem logicamente das premissas. A ligação não existe. Ela é construída de modo artificial, enganoso ou falacioso. É no mínimo equivocada, se não for maldosa.
O segundo argumento do pesquisador não é menos falho. Mesmo sem apontar uma linha de golpismo em manifestações do ex-juiz Sergio Moro ou minhas, ele sustenta que a crítica à descondenação e soltura de Lula por nós estaria na base da ideia golpista – aliás, o estudioso atribui a mim a gênese da noção de “descondenado”, algo em que provavelmente ele também está equivocado.
Mais uma vez, o pesquisador não explica como atribui responsabilidade por atos criminosos ou antidemocráticos à liberdade de expressão e de crítica sobre decisões públicas exercidas dentro dos limites democráticos e legais. Estariam na gênese do golpismo também os ministros que votaram de modo contrário à soltura ou à anulação dos processos de Lula?
O pesquisador não analisa as causas mais profundas do 8 de janeiro e, sem um estudo sobre as razões que fazem o mundo girar, conclui que são os maratonistas. Contudo, no caso do estudioso, as conclusões não parecem decorrer de simples equívocos científicos. Mesmo sem questionar sua boa-fé ou boa intenção, suas conclusões parecem ter raízes em vieses ideológicos que são evidenciados em suas manifestações.
O pesquisador, por exemplo, falou que houve “barbaridades na Lava Jato, como o grampo ilegal da ex-presidente Dilma Roussef com o atual presidente Lula”. Primeiro, a interceptação foi legal e nenhum tribunal disse nada em contrário. O que se questionou foi o levantamento do sigilo da interceptação, em decisão emitida com base em fundamentos jurídicos sólidos e que seguiu o padrão da Lava Jato, ainda que tenha sido posteriormente criticada pelo STF.
Afirmou ainda que “Ministério Público e juiz estavam consorciados”, abraçando a teoria conspiratória da esquerda, que ignora não só o altíssimo índice de confirmação das decisões, mas que o ex-juiz Moro absolveu mais de 20% dos réus, que o Ministério Público recorreu de praticamente todas as sentenças e que centenas de pedidos do Ministério Público foram indeferidos pelo juiz, enquanto centenas da defesa foram concedidos.
É assustador que um acadêmico produza um estudo e manifestações como essas. Como Helio Telho bem colocou, “a ciência, pobre ciência, ora é vítima do negacionismo ideológico, ora é usurpada pela militância política para tentar dar verniz científico à defesa de interesses partidários. Quando o pesquisador deixa a militância entrar pela porta, a ciência sai pela janela”.
Na nova era petista, em que até Ministério da Verdade é criado para sacralizar suas narrativas, não faltarão pretensos juristas e cientistas dispostos a fazer da Lava Jato um bode expiatório, às custas da verdade, da lógica e da justiça.
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