Na noite desta quarta-feira (17), o Comitê Judiciário da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, órgão equivalente à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Brasil, divulgou um relatório denominado “O ataque à liberdade de expressão no exterior e o silêncio da administração Biden: o caso do Brasil”. O relatório tem 541 páginas e contém 90 decisões secretas de remoções de contas nas plataformas de redes sociais, todas ordenadas pelo ministro Alexandre de Moraes, seja por meio do Supremo Tribunal Federal (STF), seja por meio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
As revelações dos arquivos do Congresso americano são gravíssimas. Os documentos jogam luz do sol sobre anos de decisões sistematicamente abusivas contra cidadãos brasileiros, que sofreram um grave regime de censura prévia e de violação aberta e declarada de direitos fundamentais em nome da “defesa da democracia”, mas de uma democracia que serviu apenas a um lado, enquanto demonizou, perseguiu e esmagou o outro. Dentre as conclusões do relatório, está a de que desde 2022, ano eleitoral, Moraes mandou o X (antigo Twitter) remover mais de 150 contas na plataforma, enquanto que outras 300 correm risco atualmente de serem derrubadas e censuradas por Moraes.
Dentre os alvos, estão políticos da direita e da oposição ao governo Lula, como Jair Bolsonaro, Marcos do Val, Alan Rick, Carla Zambelli, Marcel van Hattem, Homero Marchese e Nikolas Ferreira. Há jornalistas, como Guilherme Fiuza, Paulo Figueiredo, Flávio Gordon e Rodrigo Constantino; membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, como a ex-juíza Ludmila Lins Grilo e o procurador Marcelo Rocha Monteiro, além de influencers como Monark. O relatório reforça o que a direita brasileira vem denunciando há anos: que o STF, desde 2019, tem violado o sistema acusatório e o devido processo legal ao abrir de ofício inquéritos intermináveis, sem objeto definido, para investigar temas e pessoas em vez de fatos, onde o STF age como investigador, procurador e juiz, tudo ao mesmo tempo.
Os documentos jogam luz do sol sobre anos de decisões sistematicamente abusivas contra cidadãos brasileiros
O caso do influencer Monark é um dos mais emblemáticos, e a decisão do ministro Alexandre de Moraes contra ele rapidamente viralizou nas redes. Essa decisão, aliás, contém um padrão em geral repetido nas demais decisões de Moraes que determina a derrubada de contas e perfis inteiros nas redes sociais, e que vou usar como base nesta análise - que é jurídica, mas prometo evitar o juridiquês - das revelações bombásticas dos arquivos do Congresso Americano. O que a minha leitura desses arquivos revelou é um padrão de conduta apavorante do ministro Alexandre de Moraes, de uma perversidade e autoritarismo condizentes com as piores ditaduras do mundo, reais ou imaginárias, como aquela do país Oceania, retratada por George Orwell em sua obra-prima, o livro 1984.
A decisão no caso Monark, que é quase idêntica às outras que constam no material, começa com uma introdução em que Moraes informa que a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE (AEED/TSE) identificou, “mediante pesquisa em dados abertos de mídias sociais”, publicações realizadas por Monark em que são difundidas “notícias falsas sobre a integridade das instituições eleitorais”. Essa é a única contextualização dos fatos feita por Moraes: a partir daí ele passa a decidir. Mas aqui já há uma potencial ilegalidade muito grave, já que a AEED/TSE, obscuro órgão criado pelo TSE para combater a desinformação, não tem legitimidade legal para peticionar perante o Supremo.
O modus operandi de Moraes em várias decisões parece ser o de utilizar a AEED/TSE, órgão que não é independente e está subordinado a ele mesmo, como presidente do TSE, para monitorar a internet e as redes sociais com o objetivo de identificar qualquer postagem crítica ao TSE, aos seus ministros ou ao processo eleitoral. Na sequência, a AEED/TSE peticiona perante o próprio Moraes, seja no Supremo, seja no TSE, e o ministro decide de ofício, determinando o que lhe der na telha, sem sequer ouvir a Procuradoria-Geral da República (PGR). O que parece, aliás, é que Moraes tem se utilizado de modo completamente indevido da AEED/TSE como um substituto processual da PGR, já que só a PGR tem legitimidade por lei para peticionar perante o STF em matéria penal. Desconheço qualquer lei que conceda a AEED/TSE poder postulatório, que é como chamamos no Direito a capacidade que alguém tem de fazer pedidos a um juiz, como advogados.
O caso do Monark, por exemplo, tramita no Inquérito nº 4.923/DF no Supremo, e não no TSE que, aliás, não tem competência criminal originária e não pode abrir inquérito nenhum. Assim, como é que um órgão criado pela Justiça Eleitoral, supostamente para combater a desinformação durante o processo eleitoral, apresenta pedidos perante o STF diretamente a Moraes, dentro de um processo criminal? Que legitimidade tem a AEED/TSE para peticionar em um inquérito criminal no Supremo? Até onde eu saiba, nenhuma. Nada na Constituição brasileira legitima isso, contudo, pode ser que na Constituição suprema ou alexandrina essa já seja uma possibilidade. Só faltou avisar aos mais de 100 mil advogados pelo país, que se formaram, sem exceção, aprendendo sobre a Constituição Federal de 1988, não a de Alexandre de Moraes.
O uso indevido da AEED/TSE por Moraes traz, ainda, outras questões sérias: qual é exatamente o regramento legal que autorizou a criação desse órgão? Não sabemos. Quais são os critérios utilizados na busca e identificação de contas e postagens? Não sabemos, e o próprio TSE não disponibiliza com transparência essa informação. Quem são os servidores públicos responsáveis por essa atividade e como foram escolhidos? Qual o órgão de controle que fiscaliza o que eles fazem? Também não sabemos, de modo que tudo o que sobra é uma desconfiança tremenda de que a falta de transparência esconde ilegalidades ainda maiores, com violações sistemáticas do princípio da legalidade estrita, segundo o qual o Estado só pode agir de acordo com o que a lei autoriza.
O que a minha leitura desses arquivos revelou é um padrão de conduta apavorante do ministro Alexandre de Moraes, de uma perversidade e autoritarismo condizentes com as piores ditaduras do mundo
O trecho que mais viralizou da decisão de Moraes contra Monark é quando ele afirma que “Em face das circunstâncias apontadas, imprescindível a realização de diligências, inclusive com o afastamento excepcional de garantias individuais que não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Sim, é isso mesmo que você leu: Moraes, com sua suprema caneta, “afastou excepcionalmente” as garantias individuais de Monark, que deixou de ser um ser humano com direitos e garantias inalienáveis para se tornar um ser excepcional, que por um período de tempo definido pelo próprio Moraes - e que ainda não acabou - não tem direito algum, a não ser o direito de fazer o que Moraes manda, ou sofrer as consequências. Entendeu por que eu comparei as decisões de Moraes com as das piores ditaduras do mundo? Só essas ditaduras “afastam excepcionalmente” direitos e garantias individuais, que deveriam ser sagradas, inalienáveis e inerentes à pessoa humana, mas que podem ser afastadas em nome de interesses do Estado ou da “democracia inabalada”.
Um dos aspectos mais interessantes na decisão de Moraes contra Monark, e que em regra se repete nas demais demais do ministro, é que Moraes não consegue indicar um artigo de lei sequer para fundamentar o que ele está dizendo, ou mesmo apontar um crime que seja que a pessoa está cometendo. Sim, o ministro decide sem fundamentar sua decisão na lei, mas apenas em sua própria vontade, o que em geral significa a repetição dos cansados clichês e jargões alexandrinos de que “Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão!”. Pior ainda: no caso de Monark, o ministro ainda dá uma ordem genérica para que ele se abstenha de “publicar, promover, replicar e compartilhar notícias fraudulentas (fake news), sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais)”.
Ou seja, além de derrubar todas as contas de Monark em redes sociais no Brasil, efetivamente impedindo Monark de trabalhar e ter seu próprio sustento, em violação ao direito constitucional ao trabalho e à proibição legal de penhora dos instrumentos de trabalho, Moraes dá ainda uma ordem liminar genérica para que Monark deixe de fazer algo que não é crime, já que difundir fake news, por enquanto, não é crime no Brasil. Nem mesmo há no Brasil uma definição legal de fake news, colocando Monark debaixo da discricionariedade - ou seria arbitrariedade? - de Moraes. Alguém por acaso lembrou daquele trecho da Constituição que diz que “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei?”, previsto no art. 5º, II da Carta Magna?
Se você ficou curioso sobre por que Moraes mandou fazer tudo isso contra Monark, o relatório do Congresso americano explica isso, sem esconder o espanto com o nível absurdo de ilegalidade: “Na ordem, Moraes notou que apesar de uma ordem anterior sua determinando o banimento de Monark de todas as plataformas de redes sociais, Aiub havia criado novas contas e canais. Moraes estava particularmente irritado que Aiub alegadamente ‘espalhou fake news sobre as ações deste STF e do TSE’. Especificamente, Moraes se incomodou com falas de Aiub contra o próprio Moraes: ‘Nós vemos o TSE censurando as pessoas, nós vemos Alexandre de Moraes prendendo as pessoas”, escreveram os parlamentares americanos.
O que o relatório dos congressistas americanos está dizendo é que Moraes censurou Monark por um incômodo pessoal com as críticas do youtuber ao próprio Moraes, o que sugere que o ministro decidiu com base em motivações e objetivos pessoais e nada republicanos. Um dos melhores trechos do relatório vem a seguir: “Em outras palavras, Moraes ordenou a censura de um cidadão brasileiro por criticar Moraes por censurar brasileiros”. Sem falar que uma vítima não está credenciada a ser investigador ou juiz do seu próprio caso - a lei proíbe isso expressamente. Hoje Monark vive nos Estados Unidos em um exílio auto imposto do Brasil, já que aqui não consegue trabalhar, nem viver, nem expressar suas opiniões de uma maneira livre, pois todas as suas contas e perfis em redes sociais estão banidos e seu patrimônio foi alvo de ordens de bloqueio judicial de Moraes.
Há ainda um outro aspecto da decisão contra Monark que se repete nas demais decisões e ofícios judiciais revelados no relatório: Moraes ordenava sempre a derrubada completa e total de todas as contas em todas as redes sociais, e não de um conteúdo específico que teria sido considerado ilegal e criminoso, como prevê a lei brasileira. O Marco Civil da Internet, em seu art. 19, estabelece que as decisões judiciais só podem derrubar o conteúdo considerado ilegal, não havendo previsão para a derrubada da conta inteira, o que obviamente viola o direito fundamental à liberdade de expressão e caracteriza censura prévia, já que impede a expressão futura legítima da pessoa.
Essa é também uma violação do §1º do art. 19 do Marco Civil da Internet, que prevê que "A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material". Ou seja: todas as decisões e ofícios de Moraes nestes mesmos termos podem ser considerados nulos por expressa disposição legal, que prevê que as ordens judiciais deverão conter identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente à lei. Na nossa lei, são descabidas ordens de remoção completa, total e absoluta de todas as contas em todas as redes sociais, o que claramente representa censura, violação à liberdade de expressão e equivale à prática medieval de cortar a língua da pessoa para que ela não fale mais o que os donos do poder não querem ouvir.
A liberdade de expressão é um direito fundamental que reconhecidamente tem primazia sobre os demais direitos fundamentais porque é não só essencial para a manifestação da personalidade mas também um pilar da democracia. A sua violação sistemática é por isso de uma gravidade extrema. Enquanto o Supremo procurava com lupa extremismos, era em seu seio que o extremismo era mais violento, praticado debaixo da cobertura do manto judicial e de um sigilo injustificado. Por que Moraes manteve tudo sob sigilo quando isso não era necessário nem para resguardar a intimidade dos envolvidos nem para a eficácia das investigações? Por que não submeteu suas decisões ao legítimo escrutínio público? Essa foi mais uma grave violação constitucional praticada pelo próprio guardião, ao menos supostamente, da Constituição.
As revelações dos arquivos do Congresso são bombásticas e gravíssimas: o que temos agora é prova cabal dos abusos e ilegalidades. A luz do sol se esparrama sobre decisões que até ontem eram secretas e sigilosas, a que nem os advogados de defesa tinham acesso, além de uma exposição mundial sem precedentes dos desmandos do Supremo. A podridão do regime censor de Moraes está exposta para o mundo, e tivemos a vergonha de ver isso ser desbaratado pelo Congresso de um país estrangeiro em vez do nosso. A pergunta agora é: nosso Congresso, em especial os nossos senadores, vão continuar calados, submissos e servis, abaixando a cabeça e se omitindo em seu dever de fiscalizar e de controlar no exercício do poder pelo Supremo?
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