Durou pouco tempo o suposto recuo do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) depois de ter seu regime de censura e abusos judiciais exposto ao mundo por Elon Musk: nesta terça-feira (18), o ministro ordenou a retirada do ar de dois vídeos e duas matérias jornalísticas em que a ex-esposa do atual presidente da Câmara, Arthur Lira, o acusa de agressões físicas, estupro e de envolvimento em corrupção.
Na nova brincadeira autoritária de Moraes, foram censurados os canais da Folha de S. Paulo e da Mídia Ninja do YouTube, além de reportagens veiculadas pelo portal Terra e pelo Brasil de Fato. As publicações são protegidas pela “neutral reportage doctrine”, segundo a qual a imprensa pode reportar de forma neutra (sem tomar lado) controvérsias e acusações contra altas autoridades sobre fatos de interesse público, como a suposta prática de crimes. No fim da noite de quarta-feira (19), Moraes voltou atrás e derrubou a censura contra a Folha, Terra e Brasil de Fato, mas manteve censurado o canal da Mídia Ninja no YouTube.
A decisão de Moraes é rasa, e como a censura não pegou bem e foi bastante criticada, o ministro teve que voltar atrás – pelo menos em relação aos grandes veículos de imprensa, que fazem mais barulho. Com expressões genéricas e argumentos superficiais, tratora a liberdade de expressão. Trata-se de censura pura e simples, assim como Moraes fez, em 2019, com a revista Crusoé, que foi obrigada a retirar do ar a matéria “O amigo do amigo de meu pai”, que revelava o codinome secreto do ministro Dias Toffoli nos arquivos da Odebrecht.
Na decisão, o ministro repetiu o seu já infame modus operandi, consistente no uso extensivo de clichês e jargões como “Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão! Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias! Liberdade de expressão não é Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos!”. Só faltou o ministro Alexandre de Moraes explicar como uma acusação de violência doméstica é capaz de abolir o Estado Democrático de Direito e destruir as instituições.
A decisão de Moraes é rasa, e como a censura não pegou bem e foi bastante criticada, o ministro teve que voltar atrás – pelo menos em relação aos grandes veículos de imprensa, que fazem mais barulho
Essa não é a primeira vez que um ministro do Supremo resgata o presidente da Câmara de um embaraço: em 2023, Arthur Lira foi salvo por Gilmar Mendes, que blindou Lira de ser investigado na operação Hefesto, em que a Polícia Federal (PF) apurava desvios de recursos da educação. Gilmar não só mandou trancar o caso como decretou sigilo sobre toda a investigação, ordenando ainda a destruição das provas.
Agora, é o ministro Alexandre que vem voando pelos céus em sua capa preta de superministro para defender Lira do constrangimento público que acompanha a sua importante função. O fato de que Lira tem em suas mãos decisões de interesse do Supremo, como a instauração da CPI de abuso de autoridade, que já coletou assinaturas suficientes, e a proposta aprovada no Senado que limita o poder dos ministros para conceder liminares, é pura coincidência.
Basta apenas dizer que a decisão é em defesa da democracia que tudo, inclusive flagrantes ilegalidades, tornam-se subitamente justificáveis, como a Folha - agora vítima das ilegalidades - defendeu quando o alvo era a direita. E foi exatamente isso que os advogados de Arthur Lira alegaram: que as acusações da ex-esposa de Lira na imprensa não seriam uma mera notícia, mas um “movimento orgânico, encadeado, de divulgação de notícia mentirosa” e “altamente ofensiva”, que teria o “claríssimo propósito de desestabilizar não apenas a figura política” do parlamentar Lira, mas também de “atingir o exercício da elevada função da Presidência da Câmara dos Deputados”.
Percebeu a jogada, leitor? A defesa de Lira, muito esperta, utiliza o apito de cachorro favorito de Moraes: a defesa da democracia. As graves denúncias de violência doméstica, estupro, agressão e de corrupção feitas por Jullyene são magicamente transformadas em uma ameaça ao próprio Estado Democrático de Direito, em razão do cargo transitório que Lira ocupa hoje. A ex-mulher de Lira se torna, portanto, uma verdadeira ameaça golpista e antidemocrática, assim como os canais e veículos que reproduziram suas acusações, e por isso todos devem ser calados e censurados. Afinal, o que está em risco é a própria democracia.
Feito esse triplo twist carpado argumentativo, o ministro Alexandre de Moraes parte para a truculência ao escrever sobre o que deve ser feito com as acusações de Jullyene, que em qualquer outra democracia um pouco mais séria e civilizada seriam investigadas e analisadas com mais rigor: “se torna necessária, adequada e urgente a interrupção de propagação dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática mediante bloqueio de contas em redes sociais”.
Obrigado, ministro Alexandre, por deixar claro para todos os brasileiros o que o senhor pensa de mulheres que compartilham histórias de agressão, violência doméstica e de estupro, especialmente quando essas acusações são dirigidas a uma das pessoas mais poderosas da República. De fato, só pode ser mesmo “discurso de ódio”, já que o acusado tem poder e a acusadora, não. No Brasil é assim: quem tem poder está certo e quem não tem está automaticamente errado, é feio, odioso e uma ameaça à democracia.
Deixei para o fim da coluna algo que se tornou um mero detalhe, tão desconsiderado e ignorado pelo supremo ministro Alexandre que a imprensa, da qual a Folha faz parte, também passou a ignorar, em seu afã de passar pano para tudo o que os poderosos iluministros faziam em “defesa da democracia”. Trata-se da competência do Supremo para ordenar a censura da Folha e demais veículos: por acaso há alguma pessoa em toda essa história com foro privilegiado? Arthur Lira, é claro, não conta, porque a Constituição não prevê o foro privilegiado da vítima, mas sim o foro privilegiado do autor do crime.
A Folha de S. Paulo tem foro privilegiado? O portal Terra tem? E a Mídia Ninja? Talvez seja a Jullyene Lins, ex-esposa de Lira? Não, ela também não tem. Alguém tem? Se ninguém tem foro privilegiado, por que e como o ministro Alexandre de Moraes deu essa decisão, se nem ele nem o STF têm competência para julgar o caso? A pergunta é totalmente retórica, claro, e serve apenas para marcar nossa posição, que sempre foi coerente. Além disso, a demanda apresentada a Moraes é claramente cível, não criminal, o que afasta totalmente a autoridade do Supremo.
Moraes, no entanto, não liga para regras de competência faz tempo. Ele decide o que quer e pronto, e se pegar mal demais, como aconteceu com a decisão dele mesmo que mandou prender pessoas que ameaçavam sua família, ele volta atrás e recua, como se nada tivesse acontecido e como se os direitos de várias pessoas não houvessem sido violados. O Brasil virou uma terra sem lei.
A Folha de S. Paulo não tem foro privilegiado, mas aposto que tem já arrependimento por ter apoiado ingenuamente o regime de censura de Alexandre de Moraes quando o alvo eram os outros, principalmente os “bolsonaristas” e membros da infame “extrema-direita”, esses seres folclóricos que para o Supremo não têm nenhum direito fundamental, a não ser, é claro, o direito de serem punidos pessoalmente pelo ministro.
Na reportagem que reclamou da censura, o arrependimento envergonhado da Folha deu as caras: ela disse que a decisão de Moraes “tem o mesmo conteúdo de outras determinações suas voltadas a perfis de influenciadores bolsonaristas”. Com o que comparar a atitude da Folha? É como alguém esfregar a lâmpada mágica de Aladdin e depois ficar assustado com o gênio que saiu: agora ele não volta mais para a garrafa.
A ingenuidade, ou a cegueira decorrente do viés ideológico, cobrou seu preço. A censura veio para todos, e não apenas para os “bolsonaristas” e a tal da “extrema-direita”. O inquérito das fake news, o ovo da serpente de todos os abusos e ilegalidades que sofremos hoje, é usado para engolir qualquer um que fique no caminho do Supremo ou dos poderosos.
Fica a lição: não se deve silenciar diante de violações a direitos fundamentais em nome da “defesa da democracia”, quando isso evidentemente mina, enfraquece e destrói por dentro nossa jovem democracia. Que a censura de Moraes possa ser um despertar para que a grande mídia e mais gente se una em torno da verdadeira defesa dos direitos e liberdades, que não são uma causa da direita ou da esquerda. São uma causa de todos.
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