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Dizem que no Brasil tudo acaba em samba e em pizza. Neste carnaval, eu tive um sonho curioso. Assistia aos desfiles de Carnaval e ao enredo de uma escola de samba que tratava dos esquemas revelados pela Lava Jato. Vou contar o que eu vi.
“Ó abre alas, que eu quero roubar”... com essa música, começou o imponente desfile. A primeira ala veio com o tema “o petróleo é nosso”. A avenida ficou vermelha com gente que levou a sério a frase de Getúlio Vargas e, por um problema de interpretação de texto, apropriou-se da Petrobras. Afinal, a gramática nunca foi mesmo o forte “delus”.
Em seguida, a avenida central do sambódromo mudou de cor, do vermelho para o colorido. Entrou o grupo “unidos pelas malas de dinheiro”. Era um grupo muito diverso e plural, sem qualquer discriminação partidária, representando as dezenas de partidos cujos políticos se envolveram nesses crimes. O carro alegórico disparava confetes de notas de cem reais.
Eles carregavam atrás de si, enquanto dançavam alegres e beijavam o dinheiro, malas para todo gosto: tinha de viagem, grande, média e pequena, daquelas que às vezes recheiam um apartamento; tinha mala de mão com rodinha, boa para dar aquela corridinha numa pizzaria em São Paulo; e tinha até pochete e cueca estourando de dólares que iam caindo pelo chão.
Em um dado momento, todos convergiram e se uniram numa grande felicidade, um momento glorioso de “farra dos guardanapos”, com muita festa feita com o seu dinheiro regado por champanhe, comida francesa e luxo parisiense.
Entrou o grupo “unidos pelas malas de dinheiro”. Era um grupo muito diverso e plural, sem qualquer discriminação partidária, representando as dezenas de partidos cujos políticos se envolveram nesses crimes
Um grande carro alegórico foi passando, nesse momento, com representações de sítios, triplex, bancos em paraísos fiscais, joias e bolsas luxuosas e barras de ouro, tudo brilhando, devidamente lavado por profissionais.
No ponto mais alto e em destaque nesse carro, estava o último preso da Lava Jato cantando como se explicasse para a plateia um segredo fundamental sobre seu vício: “não existe pecado do lado de baixo do Equador. Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”.
Outros carros alegóricos passaram com esplendor, exibindo miniaturas de obras faraônicas: refinarias, estádios da copa, concessões rodoviárias, navios e pontes. Todo mundo olhava admirado e ficava pensando: como alguém conseguiu gastar tanto para fazer aquelas miniaturas!?
As paredes e armações dos carros, ao fundo das obras, representavam diferentes países: Brasil, Angola, Argentina, Colômbia, Cuba, Equador, Guatemala, México, Moçambique, Panamá, Peru, República Dominicana, Venezuela e outros em que o dinheiro brasileiro do BNDES pode chegar para, em seguida, ser desviado.
Adentrou, depois, a turma dos funcionários públicos corrompidos. Numerosos diretores e gerentes das estatais pendurados nas mamas delas, cantando “mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar”. Veio também o bloco dos amigos da onça, mas esse, diferente do bloco carioca de rua, estava cheio de delatores que não deixaram nada felizes seus antigos aliados.
O presente também precisa homenagear o passado. Em uma bela honraria àqueles que colocaram as fundações dos grandes esquemas no passado, apareceu o bloco do “me dá um dinheiro aí”, com representantes dos esquemas dos Anões do Orçamento, Sanguessugas, Mensalão e vários outros escândalos.
O desfile não acaba aí. Entra em seguida, com toda pompa, a ala “unidos contra a prisão em segunda instância”. É sem dúvida a ala mais superlotada do desfile, porque todo político enroscado na justiça deu um jeito de virar passista no grupo, ainda que tivesse que subornar quem liberava a entrada na avenida – afinal, eram entusiastas do programa popular “minha propina, minha vida” – popular, diga-se, entre parte dos políticos com acesso exclusivo a ele.
Colado nessa ala surgiu, com pompa e circunstância, o bloco dos engravatados. Com figurões de Brasília, veio cantando uma marchinha: “a lava jato já morreu, quem manda neste país sou eu”. Junto com esse, apareceu a ala da hipocrisia, com o lema: “impunidade para meus políticos de estimação, e para os adversários anistia não”.
Apareceu, então, o Rei Momo, bonachão, alegre, distribuindo para todos os seus sorrisos e benesses, sendo aclamado por todos os que antes passaram por ali. Muita gente aplaudia a passagem do rei por aqueles blocos. O rei retribuía, afinal, tudo o que tinha era dos seus amigos. E é importante deixar claro: se seus súditos mais íntimos fizeram algo ruim em seu benefício e no seu reinado, é claro que ele não sabia de nada.
As alas foram passando e fiquei olhando com expectativa o bloco que eu mais esperava, o das vítimas. Era com elas que eu me preocupava: idosos lesados pelas fraudes nos fundos de pensão que choraram nos meus ombros por perderem suas aposentadorias, os quais viriam certamente ao lado das mais de quatrocentas famílias que tiveram seus integrantes mortos nas estradas que não foram duplicadas por conta de desvios.
O rei retribuía, afinal, tudo o que tinha era dos seus amigos. E é importante deixar claro: se seus súditos mais íntimos fizeram algo ruim em seu benefício e no seu reinado, é claro que ele não sabia de nada
Esperei ver as pessoas com câncer que não receberam o tratamento tempestivo no Hospital Pedro Ernesto, no Rio, que fechava setores e mais setores enquanto o dinheiro era desviado da saúde; ou ainda parentes das vítimas soterradas por deslizamentos em Petrópolis que poderiam ter sido evitados se bilhões não tivessem sido desviados da secretaria de obras.
Aguardei a passagem dos brasileiros pobres, doentes e carentes de educação, de infraestrutura, de emprego e de renda, que tiveram sua vida impactada por todos aqueles foliões que passaram antes deles pela avenida.
Contudo, não veio ninguém. Virei para o lado e perguntei:
-E onde está a ala das vítimas?
-Ah, as vítimas? Elas não importam no Brasil.
Como eu disse, no Brasil, tudo acaba não só em samba, mas também em pizza.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima