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Ontem o STF realizou os três primeiros julgamentos de réus do 8 de janeiro que participaram da invasão da Praça dos Três Poderes. Para passar a mensagem de que quem ameaçar a democracia sofrerá sérias consequências, o Tribunal se dispôs a linchar os três réus, praticando graves injustiças individuais.
Dois réus foram condenados a 17 anos de prisão e o outro a 14 anos, por 7 ministros. A condenação foi por cinco crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito (5 anos e 6 meses), golpe de estado (6 anos e 6 meses) dano qualificado (um ano e 6 meses), deterioração do patrimônio tombado (1 ano e 6 meses) e associação criminosa (2 anos).
Zanin, André Mendonça e Barroso defenderam penas menores, variando entre 4 e 15 anos. Os dois últimos entenderam que o crime de golpe de estado ficava absorvido pelo de abolição violenta do Estado Democrático. Já Nunes Marques deu uma pena de 2 anos e 6 meses por entender que só estavam caracterizados os crimes de dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado.
Sou e sempre fui um defensor da lei, da ordem, da democracia e do Estado de Direito. O que aconteceu no 8 de janeiro é inadmissível. Contudo, igualmente inadmissível é aplicar aos réus do 8 de janeiro um procedimento, um julgamento e uma pena absolutamente injustos e incoerentes com a tradição do próprio tribunal.
Vou destacar brevemente dez problemas desse julgamento, com a ressalva de que ainda não foram disponibilizados os votos escritos para um exame mais detalhado dos argumentos dos ministros. Vou começar pelos aspectos de mérito do julgamento, por serem mais recentes e mais graves.
Vou começar pelo pior: os réus foram condenados sem que haja prova de que eles depredaram patrimônio público ou tenham se engajado em atos de violência. Um princípio do direito penal democrático é de que o ônus em provar o crime repousa sobre quem faz a acusação. Contudo, o STF empregou, nesses casos, a tese inovadora de que quando há crimes praticados por multidões, “crimes multitudinários”, como em brigas de torcida, não é necessário individualizar a conduta de cada pessoa. Diante da dificuldade probatória, seria aberta uma exceção ao princípio do ônus da prova, a fim de garantir a realização da justiça.
Igualmente inadmissível é aplicar aos réus do 8 de janeiro um procedimento, um julgamento e uma pena absolutamente injustos e incoerentes
O problema, contudo, é que a aplicação dessa teoria ao caso concreto enfrenta o obstáculo de que tudo está gravado. A prova é trabalhosa, mas possível. Poderiam ser usadas as imagens para identificar, indivíduo a indivíduo, qual foi o comportamento. O que não dá é para condenar as pessoas a 17 anos de prisão sem que tenha havido, no mínimo, um esforço sério de individualizar as condutas e provas.
No julgamento, Moraes ironizou a possibilidade de que algumas pessoas que invadiram os prédios tenham se oposto à depredação ou violência. Argumentou que a simples invasão já caracterizava um crime. Contudo, as imagens das câmeras de vigilância mostraram que de fato houve pessoas que se opuseram à depredação e violência. Isso por si só levanta dúvida sobre a culpa das pessoas sem que haja prova individualizada do comportamento criminoso e, segundo outro princípio do direito penal democrático, a dúvida no julgamento de mérito favorece o réu.
O segundo ponto problemático do julgamento é outro obstáculo à aplicação da teoria do crime multitudinário para esse caso concreto. Na situação de uma briga de torcida, o acusador pode até ser isentado do seu ônus de comprovar o que exatamente cada um fez, mas deve demonstrar que a pessoa estava no local da briga com o objetivo de brigar. Se havia um pai de família ali protegendo seu filho pequeno, não pode ser condenado simplesmente por estar no meio da multidão.
O princípio constitucional da personalidade ou intranscendência da pena proíbe que a pena ultrapasse a pessoa do condenado, seja para seus herdeiros, seja para outras pessoas ao seu redor no meio da multidão. Não me parece razoável inferir, a partir da invasão ao prédio público, automaticamente, a participação na depredação, ainda mais quando há exemplos evidenciados por câmeras em que isso não aconteceu.
Em terceiro lugar, o STF já enfrentou a questão da dificuldade probatória em outros casos, como o de empresas que praticam crimes. Muitas vezes é muito difícil ou impossível determinar quais dos sócios administradores foram responsáveis pela prática criminosa. Ainda assim, o STF entende que a denúncia ou acusação é obrigada a individualizar a conduta dos sócios sob pena de ser considerada inepta (p. ex, veja-se o HC 93683).
O que não dá é para condenar as pessoas a 17 anos de prisão sem que tenha havido, no mínimo, um esforço sério de individualizar as condutas e provas
É bastante curioso, aliás, que o STF use uma tese inovativa como a do crime multitudinário para condenar. Trata-se de uma corte em que predominam aqueles que se autodesignam “garantistas” e que são bastante inovativos para absolver ou anular, como aconteceu no caso Lula, no caso decidido semana passada relativo à Odebrecht, na invenção do “desrecebimento de denúncia” e na criação de novas regras que anularam condenações da Lava Jato, como a de que o réu delatado tem o direito de falar depois do delator.
Em quarto lugar, a condenação dos réus pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de tentativa de golpe parece irracional porque os meios empregados pelos manifestantes eram notoriamente ineficazes para os resultados supostamente pretendidos, fossem eles o de dar um golpe ou abolir o Estado de Direito. O Código Penal determina em seu artigo 17 que não se pune uma tentativa criminosa quando é impossível que o crime se consume por ineficácia absoluta do meio empregado.
O ministro Nunes Marques se posicionou de forma correta: "Torna-se necessário para o cometimento do crime em análise que a conduta tenha ao menos o potencial de produzir no plano concreto o resultado pretendido, ainda que não venha a ocorrer, uma vez que o verbo núcleo do tipo é 'tentar' abolir o Estado democrático de Direito.”
O que parece que os manifestantes buscavam com seus atos, na verdade, era uma intervenção militar e, se esse era o caso, então eles deveriam ser acusados e julgados por incitação ao crime. Talvez pelo fato de a pena deste crime ser bem menor, os réus tenham sido forçadamente enquadrados nos outros crimes, numa conta de chegada, contudo, numa análise técnica, não parece ser algo juridicamente viável.
Em quinto lugar, a condenação pelo crime de associação criminosa exige a demonstração de permanência e estabilidade no vínculo entre os criminosos com a finalidade de serem praticados crimes. É difícil compreender que o encontro episódico dos réus, por curto período de tempo, no contexto de eventos específicos, caracterize a permanência e estabilidade que os tribunais exigem para que se configure a associação criminosa. Se havia crime há tempos, aliás, várias autoridades do Estado, dos três Poderes, deveriam estar respondendo por omissão e prevaricação, por não terem agido em momento anterior diante do conhecimento de um suposto crime que estava à vista de todos.
Em sexto lugar, o tamanho da pena de prisão é flagrantemente desproporcional diante dos outros casos julgados pelo próprio tribunal. O STF condenou políticos que foram responsáveis pelo Mensalão, que desviou pelo menos cem milhões de reais, a penas muito menores. José Dirceu e Delúbio Soares foram condenados a aproximadamente 7 anos de prisão, enquanto a pena de José Genoíno não chegou a 5 anos.
É notável ainda que a condenação dessas pessoas, em relação às quais não se tem prova nem de que tenham danificado o patrimônio público, represente dois terços ou mais da pena a que foram condenados os responsáveis pelo assassinato da filha de Gloria Perez (penas em torno de 19 anos), o goleiro Bruno por matar Eliza Samudio cruelmente (22 anos), Elize Matsunaga por ter assassinado seu marido (16 anos) e o líder do PCC André do Rap (condenado por tráfico em dois processos a penas que somam 25 anos).
José Dirceu e Delúbio Soares foram condenados a aproximadamente 7 anos de prisão, enquanto a pena de José Genoíno não chegou a 5 anos
Além disso, a Justiça norte-americana costuma ser muito mais severa do que a brasileira. No episódio da invasão do Capitólio por apoiadores de Trump, porém, as penas foram mais leves embora as consequências tenham sido mais severas: quatro pessoas morreram no ato, um policial no dia seguinte e 140 agentes de segurança ficaram feridos. Apesar disso, como disse, as penas foram muito inferiores às brasileiras. Paul Hodgkins, por exemplo, fez acordo e pegou 8 meses. Guy Reffitt, que transportou armas para o Capitólio e ele mesmo ameaçou com uma arma o então presidente da Câmara, foi condenado a 7 anos e 3 meses de prisão. Jacob Chansley, o famoso homem de peito descoberto com o chapéu de pele com chifres, foi condenado a 3 anos e 5 meses de prisão.
Em sétimo lugar, o STF condenou os manifestantes à insolvência civil, algo extremamente severo. Além da multa, terão que pagar 30 milhões de reais a título de dano moral coletivo. Trata-se de um valor que pesará nas costas de pessoas simples por toda sua vida, impedindo-as de ter carros, casas ou contas bancárias em seus nomes.
Vamos agora às questões formais, começando pelo oitavo ponto: a Constituição não dá ao tribunal competência para julgar esses casos do 8 de janeiro. Conforme a jurisprudência do próprio tribunal, a Constituição atribui e ao mesmo tempo limita as funções da Suprema Corte. Nem mesmo lei (ou regimento interno) pode ampliá-las, segundo entendimento do tribunal.
Nenhum réu julgado ontem tem foro privilegiado perante o Supremo. Além disso, a tradição do tribunal sempre foi a de encaminhar os casos sem foro privilegiado para julgamento em primeira instância, ainda que pudesse ter alguma relação com outros eventuais casos em que é investigada ou acusada pessoa com foro privilegiado. Assim, não se justifica o julgamento desses réus perante a Suprema Corte, o que tem profundos impactos porque lhes tolhe o direito a ter revisto seus casos perante outros tribunais.
Em nono lugar, o ministro relator, Alexandre de Moraes, não poderia jamais relatar e votar esse caso. Isso porque a investigação lhe foi atribuída sem livre distribuição, o que viola o princípio constitucional do juiz natural. Trata-se evidentemente de um tribunal ou juízo de exceção, escolhido a dedo para conduzir investigações e condenações a ferro e fogo.
Por fim, o ministro Alexandre de Moraes conduziu diretamente a investigação. Foi aplicada ao caso regra do regimento interno que dá ao ministro a função de protagonista, diferente dos casos em que a Polícia ou o Ministério Público conduzem a apuração e o juiz apenas se restringe a emitir decisões quando está em questão a intrusão em direitos fundamentais, como quebras de sigilos e buscas e apreensões. É difícil compreender que o ministro não esteja suspeito para atuar nesse caso, ainda mais à luz do entendimento do próprio tribunal que recentemente defendeu a figura do juiz de garantias.
Em conclusão, é notável que Toffoli tenha afirmado, sem qualquer evidência, na semana passada, que a Lava Jato teria sido um “pau de arara do século XXI”. Toffoli procura um cisco no olho alheio, quando não percebe a trave nos olhos do STF que, por uma causa nobre, pratica uma série de injustiças severas contra pessoas simples que não têm antecedentes criminais.
Há séculos, para inibir ameaças ao establishment e incutir medo na população, rebeldes e vozes discordantes foram empalados, crucificados ou enforcados, a olhos vistos, e seus corpos eram mantidos expostos em estradas. Respeitadas as devidas proporções, o que acontece hoje tem um mesmo significado. Regras formais e injustiças de mérito sobre culpa e pena estão sendo praticadas para incutir medo.
O que acontece diante dos nossos olhos é, claramente, um linchamento. Com o pretexto de defender o Estado de Direito, o STF violenta indivíduos em seus corpos e bens, praticando imensas injustiças individuais. Com a bandeira da democracia em suas mãos, o Supremo a ataca por dentro, minando pilares básicos da própria democracia, dentre os quais se incluem os princípios do direito penal democrático.
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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima