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Deltan Dallagnol

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Justiça, política e fé

O STF já condenou Bolsonaro

(Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República)

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O fato quase passou batido para muita gente, mas, nesta semana, postei um vídeo nas minhas redes sociais que causou uma rara unanimidade de opiniões entre promotores, procuradores e advogados criminalistas. Trata-se de um vídeo curto, de 29 segundos, de jornalistas da Globo News comentando a notícia de que a Procuradoria-Geral da República (PGR) achava a delação do tenente-coronel Mauro Cid “fraca” e desprovida de “provas de corroboração”, isto é, de provas que a confirmassem, o que é essencial para que uma delação premiada possa se tornar uma acusação e uma condenação.

O vídeo começa com a jornalista Andréia Sadi falando com seu colega, o comentarista Octavio Guedes: “Agora, Octavio, de fato, se não houver denúncia…” Sadi levanta a bola para seu colega matar no peito: “Impossível não haver denúncia”, responde Guedes, de forma categórica. “O Ministério Público Federal já recebeu recados do Supremo de que existe o crime de prevaricação [o qual envolve deixar de fazer algo que deve ser feito]. E que no caso do Cid, se eles insistirem nessa briga, eles podem tomar um processo de prevaricação no meio da cara”, revela, sem hesitação e em tom triunfante.

“Eles também?” pergunta o jornalista Marcelo Lins para Octavio. “Eles também, o Ministério Público, o MP”, confirma Guedes. Tive que assistir ao vídeo mais de uma vez para acreditar no que eu estava vendo e, no momento em que escrevo este artigo, posso dizer que a reação dos meus seguidores foi a mesma: o vídeo foi visto originalmente 501 mil vezes, mas foi repetido 456.524 vezes, num total de quase 1 milhão de visualizações. Milhares de brasileiros, ao assistirem aquilo, também tiveram que repetir o vídeo para ter certeza do que estavam vendo.

Como ex-procurador da República que serviu a sociedade brasileira por mais de 18 anos, o vídeo me chocou profundamente. São tantas coisas erradas em menos de 30 segundos que é difícil saber até mesmo por onde começar a explicar o absurdo a que assistimos. Afinal, o que o jornalista fez, ao vivo, foi dizer que o Supremo Tribunal Federal AMEAÇOU os procuradores da Procuradoria-Geral da República com um processo criminal por prevaricação caso eles não façam o que o STF quer, isto é, apresentar uma acusação formal contra Bolsonaro, a chamada denúncia criminal.

A primeira coisa notável do vídeo é a forma como o jornalista dá a informação sobre a ameaça do STF à PGR com toda a tranquilidade do mundo, muita naturalidade, ar de aprovação e sem juízo crítico. Não há qualquer constrangimento, nem mesmo espanto diante da informação de que o STF está ameaçando a PGR a fazer o que os supremos ministros querem. Tudo é tratado com a mais absoluta normalidade.

São tantas coisas erradas em menos de 30 segundos que é difícil saber até mesmo por onde começar a explicar o absurdo a que assistimos

O fato chama atenção porque a função do jornalista, além de informar o público, é de fiscalizar e cobrar os poderes constituídos, e não de endossar e apoiar o abuso de poder de quem quer que seja. O brilhante Millôr Fernandes tinha uma máxima que resumia bem a função do jornalista: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”

Muitos desses jornalistas da Globo News, inclusive, tornaram-se extremamente críticos da Lava Jato nos últimos anos, apontando abusos e excessos da operação que simplesmente não existiram. Agora, diante de uma grande oportunidade de mostrarem isenção e seriedade, não fizeram a mesma crítica quando se trata de ministros do STF. Por quê? É por que eles são poderosos? É por que eles têm a caneta na mão? Ou simplesmente para não perderem as fontes?

Um exemplo disso são as diversas críticas que a Lava Jato recebeu em razão da Vaza Jato, a ferramenta de assassinato de reputações do jornalismo militante da extrema-esquerda, baseada em supostas conversas obtidas por meio criminoso pelo hacker de Araraquara. Diziam os críticos que tais mensagens revelavam um conluio entre o Ministério Público e o juiz da Lava Jato para processar e condenar réus selecionados, o que jamais existiu e nem ficou provado em lugar algum.

Mas quem criticava a Lava Jato agora ficou em silêncio diante do relato de Octavio Guedes. Fica a pergunta: quer dizer então que o juiz não pode combinar com o promotor denunciar alguém (o que nunca aconteceu), mas tudo bem o STF obrigar a PGR a denunciar Bolsonaro (o que parece estar acontecendo)? O duplo padrão, visto em menos de 30 segundos, prova que o problema não eram os supostos abusos e excessos da Lava Jato. O problema mesmo eram os alvos. O problema é que a própria Lava Jato prendeu e condenou muita gente importante, inclusive quem hoje senta na cadeira de presidente da República.

A segunda parte do problema, claro, é o próprio “recado” dos ministros do STF, como disse o jornalista. E aqui parto do pressuposto de que o jornalista está falando a verdade, isto é, de que não há má-fé ou equívoco de sua parte. Tomo em conta aqui o fato de que não houve nenhuma reação do STF desmentindo o absurdo. O que a fala revela é que certos ministros do STF têm interesse na denúncia e posterior condenação de Bolsonaro. Não há outra explicação. A única razão que ministros do Supremo teriam para mandar um “recado” desses seria porque eles estão preocupados em garantir que Bolsonaro seja condenado e preso e por isso a PGR precisa apresentar uma denúncia perante a Corte, se não os procuradores é que serão punidos.

Quer dizer então que o juiz não pode combinar com o promotor denunciar alguém (o que nunca aconteceu), mas tudo bem o STF obrigar a PGR a denunciar Bolsonaro (o que parece estar acontecendo)?

Ou seja: há uma conta de chegada, um resultado pré-determinado por esses ministros, que é a condenação de Bolsonaro. Não há direito à ampla defesa e ao contraditório, nem qualquer outra possibilidade que não seja a condenação. E o prejulgamento está acontecendo antes do desenvolvimento e da conclusão das investigações. Investigações são feitas para testar hipóteses, a de culpa e a de inocência, mas neste caso a hipótese correta já está predeterminada, como no suposto caso de agressão ao ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma. Não se trata de buscar a verdade. Condenar é apenas questão de tempo.

A pergunta de ouro em toda essa história é: quem vai denunciar os procuradores da PGR por prevaricação caso Bolsonaro não seja denunciado e o STF decida levar sua ameaça às últimas consequências? Isso porque o titular da ação penal é o Ministério Público. Então se o próprio Ministério Público chegar à conclusão de que não há provas para denunciar Bolsonaro, quem vai denunciar o Ministério Público por prevaricação? 

Se alguém dissesse há alguns anos que o Judiciário assumiria a função de acusador, eu consideraria impossível. Contudo, tanta coisa que considerava impossível tem acontecido, ao arrepio da Constituição, que hoje todo tipo de absurdo é possível. O Direito se tornou um mero instrumento do poder (e não de contenção do poder), a serviço dos Donos do Poder. 

Depois de mandarem a Receita parar de investigar seus ministros, de livrar os réus da Lava Jato, anulando condenações e provas de corrupção, de soltar Lula, de se tornar o foro universal do julgamento de adversários políticos do governo ou do tribunal, de condenar a mais de 14 anos senhorinhas presas com um terço e uma bíblia na mão sem provas de que tenham quebrado uma janela, de assumirem a função de legisladores para implementar políticas públicas progressistas, quem é capaz de dizer o que o STF não pode fazer? Pode até eleger presidente!

A cada dia que passa, descobrimos novas funções do STF. Primeiro veio o STF guardião da verdade, com o inquérito das fake news. Depois, o STF guardião da democracia, com o inquérito dos atos antidemocráticos e com o linchamento dos réus do 8 de janeiro. Depois surgiu o juiz-vítima, em que o ministro alvo de ofensas julga quem lhe ofendeu. Na sequência, foi a vez do juiz-parte, quando o juiz é vítima e assistente de acusação contra seus supostos agressores ainda na fase de inquérito, sem previsão legal. 

Recentemente, surgiu o STF guardião do regimento interno e não mais da Constituição, que usa regras de organização do tribunal para cassar a palavra de advogados e impedir os direitos constitucionais à ampla defesa e ao contraditório. Agora, aparentemente, chegamos ao STF dono da ação penal e dono da PGR: se a PGR não denunciar quem o STF quer, vai ser processada por prevaricação.

Essa fala absurda, que coloca o STF acima do Ministério Público, como verdadeiro órgão censor e fiscalizador dos procuradores, mostra que o STF se tornou uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, e não senhorinhas de Bíblia e terço na mão e bandeiras do Brasil nas costas. O Estado Democrático de Direito pressupõe a obediência às leis, a separação entre os Poderes e a atuação das instituições dentro das linhas fixadas para elas na Constituição. Não há espaço para um STF dos Donos do Poder, em que ministros exerçam o poder como deuses olimpianos, sem freios, controles ou responsabilização.

O único lado positivo de todo esse absurdo foi a rara e momentânea unanimidade na opinião de procuradores, promotores e advogados criminalistas, que não costumam concordar tanto e nem tão publicamente. Um procurador, diante da notícia, escreveu: “Essa informação é um absurdo tão grande, uma teratologia tão flagrante que só pode ser falsa. Não tem nem pé nem cabeça”. 

Um advogado criminalista, de conhecidas tendências progressistas, ficou igualmente revoltado: “O jornalista falando com a maior tranquilidade. O dia que algum membro do MP for processado por não denunciar alguém (ou por denunciar!), sem prova cabal de corrupção ou interesse pessoal, fechem o país e joguem a chave fora. De república não se trata.” A própria OAB, aliás, recentemente, decidiu reagir aos abusos do STF.

Se continuar assim, o STF vai acabar unindo o país. Contra ele.

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