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“A Polícia Federal apreendeu com Carlos Bolsonaro um computador da Agência Brasileira de Inteligência. Atenção! Nove horas e cinquenta e dois minutos, informação em primeira mão que você vê aqui na Globo News (...) O vereador do Rio de Janeiro (Carlos Bolsonaro) jamais teve qualquer cargo na administração federal, não há explicação possível para ele ter consigo um equipamento cadastrado na ABIN”, vociferou ao vivo a jornalista Daniela Lima, da Globo News, durante a deflagração, pela Polícia Federal (PF), da mais nova fase da operação que apura a existência de uma suposta ABIN paralela.
O problema? Era tudo mentira, fake news: o computador da ABIN foi encontrado na casa de uma servidora da ABIN, e não com Carlos Bolsonaro. A informação falsa - dada pela jornalista com o entusiasmo de quem vê alguém que odeia se dando mal - repercutiu amplamente na imprensa nacional, e foi replicada não só por jornalistas e grandes veículos de comunicação, como também por políticos de esquerda, que usaram a informação para tripudiar sobre o clã Bolsonaro. Afinal de contas, o fato noticiado indicava o envolvimento de Carlos Bolsonaro em crimes - quando menos, o de desvio de bem público.
No jornalismo, o que Daniela Lima fez é conhecido como “barrigada”. A barrigada acontece quando um jornalista divulga uma informação incorreta e equivocada, seja por falta de atenção, seja por falta de apuração, seja por algum outro motivo mais obscuro. Sua retratação um dia depois não repara o mal causado, porque sabemos que notícias falsas chegam muito mais longe e muito mais rápido. Contudo, a barrigada de Daniela não foi a única do dia. Houve quem fez muito, mas muito, pior.
Li atentamente o parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e constatei estarrecido que, além de outros erros e contradições, há três grandes problemas nas buscas determinadas: um problema procedimental, um problema probatório e um problema material, de falta de enquadramento dos comportamentos em crimes da nossa lei. Vamos examinar a seguir cada um deles.
O primeiro problema é o procedimental, que trata de saber se as investigações estão seguindo as regras previstas em lei, principalmente a do devido processo legal. A investigação sobre a ABIN paralela é um desdobramento do famoso inquérito 4.781/DF, mais conhecido como “inquérito das fake news”, instaurado de ofício pelo ministro Dias Toffoli, em 14/03/19, para investigar notícias falsas, ameaças e ofensas aos ministros do Supremo. Alexandre de Moraes foi designado para presidir o inquérito que é considerado ilegal por alguns dos maiores juristas do Brasil.
O inquérito das fake news padece de inúmeros vícios: foi instaurado de ofício, sem livre distribuição, com relator escolhido a dedo, sem publicidade, com prazos elastecidos em desobediência à lei processual penal (o inquérito já tem mais de 5 anos, sem indicação de quando terminará), sem objeto definido, pois investiga um tema (notícias falsas) e não um fato específico (como João matou Pedro, por exemplo), e não teve por muito tempo a participação da PGR, que inclusive já pediu o arquivamento do inquérito várias vezes. Além disso, advogados ficaram anos e anos sem acesso aos autos, em violação aos direitos de defesa mais básicos do nosso ordenamento jurídico.
É com base nesse inquérito contaminado que Alexandre de Moraes instaurou a investigação a respeito da ABIN paralela, a qual, atualmente, segue ignorando uma das regras mais básicas do Direito, a da competência: o STF só pode julgar casos envolvendo parlamentares por crimes cometidos durante o mandato e/ou que possuam relação com o cargo. O STF, portanto, sequer tem competência para tocar essa investigação, já que os supostos crimes teriam sido praticados quando o agora deputado federal Alexandre Ramagem (PL/RJ) era Diretor-Geral da ABIN e, portanto, não tinha foro privilegiado.
O segundo problema é de natureza probatória: simplesmente não foram apresentadas provas robustas que comprovem a autoria e materialidade de crimes. Toda a operação contra Carlos Bolsonaro gira ao redor do print de uma troca de mensagens de WhatsApp entre Ramagem e Luciana Almeida, ex-assessora de Carlos Bolsonaro. Na troca, datada de 11 de outubro, terça-feira, Luciana diz “precisar muito de uma ajuda”, e envia na sequência o nome de uma delegada da PF que seria responsável por um inquérito que envolveria Bolsonaro e seus três filhos.
Com base na mensagem, Moraes entendeu que as provas “indicavam” que “a organização criminosa infiltrada na Abin” se valeu de “métodos ilegais” para perseguir adversários políticos e para acompanhar o andamento de investigações contra aliados. Entretanto, quem leu com cuidado a decisão percebeu vários problemas. Talvez o mais grave é que, olhando o calendário, o único ano recente em que o dia 11 de outubro caiu numa terça-feira foi o ano de 2022. Nessa época, Ramagem já tinha sido eleito deputado federal e estava fora da ABIN há pelo menos 6 meses, de modo que ele não poderia ter usado a estrutura do órgão para fazer o que Moraes o acusa de fazer.Há um outro problema adicional: tanto o parecer da PGR quanto a decisão de Moraes cometeram um erro atroz sobre a troca de mensagens. A PGR diz que Luciana, ex-assessora de Carlos, falava com Ramagem, “então diretor-geral da Abin”, enquanto que na decisão de Moraes, o ministro afirma que Luciana falava com Priscilla Ferreira, uma assessora de Ramagem. Ambos estão errados: a mensagem era de Luciana para Ramagem, que NÃO era mais diretor-geral da ABIN, como já vimos, mas sim deputado federal eleito.
Erros amadores e juvenis desse tipo, cometidos tanto pela PGR quanto por Moraes, mostram de forma clara a má-qualidade geral das investigações conduzidas por Moraes no Supremo
Pior do que os erros é o fato de que Moraes se utilizou justamente disso para decretar busca e apreensão também contra Priscilla Ferreira, assessora de Ramagem, que sequer era parte da troca de mensagens e, portanto, não deveria nem ser investigada, quem dirá sofrer uma medida grave e extrema como uma busca e apreensão. Moraes explicitamente diz na decisão que foi Priscilla quem trocou as mensagens comprometedoras com Luciana, e não Ramagem. Só isso seria o suficiente para anular a investigação inteira, caso o STF seguisse os precedentes que o próprio tribunal usou para anular casos da Lava Jato e de outras grandes operações contra a corrupção.
O terceiro problema, de atipicidade, refere-se ao fato de que os fatos trazidos por Moraes, tais como apresentados e comprovados, jamais podem ser enquadrados como crime. Isso porque Ramagem não respondeu à mensagem de Luciana, nem há qualquer indício de que tenha repassado informações sigilosas. Some-se que a própria PF confirmou que os inquéritos policiais mencionados por Luciana na mensagem não dizem respeito a Bolsonaro e seus filhos. Moraes relaciona, na decisão, a possível prática dos crimes de violação do segredo profissional, invasão de dispositivo informático e de interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, mas os fatos e provas não se enquadram em nenhum desses crimes.
A cada novo passo de Moraes contra políticos de direita, que estão na oposição ao governo Lula, e que já se colocaram publicamente como pré-candidatos das eleições municipais deste ano, vai se desenhando um clima terrível de politização da Justiça, de criminalização da direita e de intensas tentativas de pescaria probatória. Isso em que desafetos do consórcio Lula-STF são perseguidos e punidos enquanto políticos de esquerda, ou acusados de corrupção, têm seus casos anulados e suas barras aliviadas por ministros do STF.
Nosso único consolo, em todo esse triste cenário, é que, de barrigada em barrigada, cada vez mais brasileiros estão abrindo os olhos para a tirania judicial e o autoritarismo crescente que impera no Brasil nesse governo Lula 3, assim como para o fenômeno crescente do jornalismo do acesso, em que jornalistas replicam sem qualquer análise crítica informações que recebem, atuando como porta-vozes ou megafones dos donos do poder.