“Ministros do Supremo Tribunal Federal monitoram deputados que votaram a favor de pacote anti-STF”, anunciou o jornal O Globo em 11 de outubro, logo após a aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, de quatro propostas que limitam os poderes do Supremo Tribunal Federal (STF). “Os parlamentares que têm sido foco especial das atenções são aqueles com processos em andamento na própria Corte”, escreveu a colunista Bela Megale, deixando claro como o Supremo retaliaria os deputados.
Em menos de uma semana, a resposta do Supremo começou: o deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS) anunciou, no dia 15, em suas redes sociais, que o ministro Flávio Dino abriu um inquérito criminal contra ele e determinou que prestasse depoimento à Polícia Federal (PF). O inquérito não investiga corrupção, desvio de recursos de emendas parlamentares, lavagem de dinheiro ou organização criminosa. Nem perto disso. Em vez disso, Dino busca apurar declarações feitas por Marcel na tribuna da Câmara dos Deputados, o lugar mais sagrado ou protegido para falar no Brasil - até esse inquérito.
No dia 14 de agosto, em um discurso acalorado, característico de van Hattem, um dos mais ardorosos defensores das nossas liberdades constitucionais, o deputado chamou o delegado federal Fábio Shor, da PF, de "abusador de autoridade". Shor conduz investigações a mando do ministro Alexandre de Moraes, envolvidas em episódios controversos, como a prisão ilegal de Filipe Martins. Dino justificou o inquérito alegando que Marcel “ultrapassou as fronteiras da imunidade parlamentar”.
Essa expressão resume a gravidade do caso: a Constituição não admite qualquer fronteira para a imunidade parlamentar. O artigo 53 é explícito: “Deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. O texto não faz distinções — são quaisquer opiniões, não apenas as que agradam ao ministro Flávio Dino ou a Alexandre de Moraes. E se há abusos, e isso pode ser objeto de controvérsias, eles podem e devem ser denunciados justamente pelos parlamentares, e para isso eles precisam contar com a segurança que a Constituição lhes dá - ou aparentava lhes dar.
O STF não tem o direito de relativizar o que a Constituição não relativiza. A imunidade parlamentar cobre até mesmo ofensas e crimes. Uma proteção que não inclui essa possibilidade seria inútil. Processar parlamentares por injúria, calúnia ou difamação anularia o propósito da imunidade. Seria tão sem valor quanto as cópias da Constituição no gabinete de Alexandre de Moraes. A ideia de que imunidade parlamentar não abrange ofensas ou crimes só pode ser defendida por quem renunciou ao bom senso em favor da ideologia. Ademais, o discurso de Marcel foi proferido na tribuna da Câmara, um espaço sagrado em qualquer democracia madura, em que até mesmo o STF, em decisões passadas, evitava interferir.
A Constituição não admite qualquer fronteira para a imunidade parlamentar. O artigo 53 é explícito: “Deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”
O discurso do deputado é público, gravado e divulgado nas redes sociais, e seu teor não foi negado por ele. Qual seria, então, o motivo para abrir uma investigação? O único propósito aparente é constranger e perseguir judicialmente um parlamentar incômodo ao sistema. A contradição é ainda mais evidente em comparação com uma decisão recente de Flávio Dino. O ministro alegou que expressões como “nazista” ou “fascista” não constituem crimes, ao julgar um processo de injúria movido pelo deputado Gustavo Gayer (PL-GO) contra José Neto (PP-GO), que o chamou de “nazista” em um podcast. Para Dino, “nazista” é aceitável quando o ofendido é de direita, mas “abusador de autoridade” não é aceitável, mesmo sendo dito por um deputado federal, que tem imunidade material e quando a fala é embasada em fatos comprovados.
O mesmo ministro que não considera ofensas “nazista” ou “fascista” como crimes conseguiu condenar o influenciador Monark a um ano e dois meses de prisão por chamá-lo de “gordola”. A seletividade é clara: se a fala vem de um aliado, é tolerada; se vem de um adversário, é punida. É o que se vê mais uma vez no caso de van Hattem. Não é sobre o que se fala, mas sobre quem fala, como expliquei neste artigo.
A situação se torna ainda mais vergonhosa quando se descobre que Marcel foi o relator da PEC 08/2021, aprovada na CCJ, que visa limitar decisões monocráticas dos ministros do Supremo e faz parte do pacote anti-ativismo judicial do STF. A mensagem transmitida pela colunista de O Globo se concretizou: Marcel, um crítico veemente dos abusos do Supremo, relatou uma proposta que restringe o poder dos ministros. Poucos dias depois, tornou-se alvo de um inquérito sigiloso por declarações feitas na tribuna contra um delegado que executa ordens de Moraes.
Não é o fim de Marcel, nem da imunidade parlamentar: é o fim da democracia.
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