Ouça este conteúdo
Em mais uma viagem para o exterior para uma palestra a empresários, paga por sabe-se lá quem, o ministro Gilmar Mendes cometeu o famoso sincericídio – uma mistura de sinceridade com suicídio, quando alguém fala o que não deveria e acaba revelando verdades íntimas, ocultas, que o locutor não gostaria que as pessoas soubessem e que o deixa nu e exposto na frente de todos. A Bíblia, por sinal, também tem um ditado para isso: “A boca fala do que está cheio o coração”, diz Mateus 12:34.
Lá em Paris – destino chique da vez – o ministro Gilmar soltou as seguintes frases: “Se a política voltou a ter autonomia, isso se deve ao Supremo Tribunal Federal. (...) Se hoje nós temos a eleição do presidente Lula, isso se deveu a uma decisão do Supremo Tribunal Federal. (...) Se a política deixou de ser judicializada e deixou de ser criminalizada, isso se deve ao Supremo Tribunal Federal. E aqui está um ator que chama essa reforma também de sua”.
O discurso de Gilmar sugere que a anulação da condenação de Lula foi buscada intencionalmente, como um meio heterodoxo para tornar Lula elegível.
O sincericídio de Gilmar nos dá mais uma oportunidade de expor aquilo que a direita e os conservadores têm observado e criticado à exaustão: a parcialidade e o ativismo do STF. Na fala de Gilmar há três afirmações absurdas, mas vou concentrar minha análise neste espaço na seguinte afirmação: “Se hoje nós temos a eleição do presidente Lula, isso se deveu a uma decisão do Supremo Tribunal Federal”.
Essa frase de Gilmar é extremamente grave. O que o ministro Gilmar diz, literalmente, é que foi a anulação da condenação de Lula pelo STF que permitiu que ele fosse eleito. O contexto da fala foi um debate sobre a limitação dos poderes do STF pelo Congresso. Gilmar buscava convencer a plateia da importância de serem mantidos os poderes supremos. Então, o ministro fala da decisão que viabilizou a eleição de Lula como se fosse um “mérito” do STF.
O STF revelou que tem um lado na disputa entre Lula e Bolsonaro – e que esse lado é o do Lula.
E por que raios isso é um “mérito” do STF? Para bom entendedor, parece que o ministro quis dizer o seguinte: “Vocês precisam ser gratos a nós, poderosos ministros do Supremo, pela eleição do presidente Lula e pela derrota de Bolsonaro”. A fala coloca Lula como a única opção legítima e possível aos brasileiros, como se qualquer outro candidato – e especialmente Bolsonaro – não fossem uma opção legítima a ser escolhida.
O discurso de Gilmar sugere que a anulação da condenação de Lula foi buscada intencionalmente, como um meio heterodoxo para tornar Lula elegível, a fim de reabilitar o único candidato capaz de derrotar Bolsonaro. Afinal, se não foi intencional, qual o “mérito” que o STF teria na eleição de Lula a ser invocado na discussão? Se o STF tivesse simplesmente feito seu dever, o que haveria que merecesse reconhecimento?
VEJA TAMBÉM:
O ministro coloca o STF na posição de instituição iluminista e paternal que “salvou” a democracia e “salvou” os brasileiros de fazerem uma escolha errada elegendo Bolsonaro. O que isso faz é posicionar todo o STF como antagonista do ex-presidente Bolsonaro, pondo em xeque todas as decisões do tribunal que beneficiaram Lula e enfraqueceram Bolsonaro, especialmente aquelas tomadas pelo TSE nos últimos anos. E foram muitas.
No STF: o fim da prisão em segunda instância, que tirou Lula da cadeia; a anulação das condenações e processos contra Lula, o que lhe devolveu seus direitos políticos e lhe permitiu se eleger; e a anulação de provas da Odebrecht que foram usadas contra Lula. No TSE, até 14 de outubro do ano passado, foram 42 decisões favoráveis a Lula e apenas 6 favoráveis a Bolsonaro a respeito de fake news nas propagandas eleitorais.
Há um escancarado desequilíbrio entre Poderes que precisa ser equacionado.
Mais do que a discrepância dos números, que tem relação com o número de ações movidas, o que impacta é o conteúdo das decisões, que em vários casos cercearam opiniões críticas e avaliações sobre o provável comportamento de Lula no futuro como se tratassem de fatos inverídicos (“fake news”). Houve, por exemplo, decisões que vedaram a associação de Lula com ditadores, com o aborto ou com banheiros unissex.
Criou-se ainda um conceito de “desordem informacional” para cercear um vídeo com informações verdadeiras sobre esquemas criminosos do governo Lula. Como disse Ives Gandra da Silva Martins, esse conceito simplesmente não existe no Direito. Houve até censura prévia em favor de Lula de um documentário, o que é proibido pela Constituição e que foi autorizada “excepcionalmente”.
A lei deveria ter sido aplicada, doesse a quem doesse, mas a mensagem é a de que não houve sua aplicação imparcial.
O TSE garantiu a Lula, ainda, 184 inserções de direito de resposta nas propagandas de Bolsonaro para rebater acusações de que Lula seria corrupto e ladrão, ao passo que o mesmo TSE negou pedidos de Bolsonaro para responder a acusações de Lula quando este o chamou de genocida, miliciano e fascista.
A impressão que dá é que quem apoia Bolsonaro tem contra si todo poder e força do STF, como já vimos acontecer nos inquéritos ilegais e inconstitucionais das fake news e dos atos antidemocráticos, todos mirando a direita e os conservadores num foro incompetente. Parte da esquerda lulista que tem as fake news como método ou então elogia uma organização terrorista como o Hamas (praticando crime de apologia) passa ao largo da fiscalização do tribunal que tomou para si a missão de acabar com as fake news e o discurso de ódio.
Diante desses fatos, o que os brasileiros vão pensar quando ouvem Gilmar Mendes dizendo que a eleição de Lula só ocorreu graças ao STF? Vão pensar, com razão, que o STF revelou que tem um lado na disputa entre Lula e Bolsonaro – e que esse lado é o do Lula. A lei deveria ter sido aplicada, doesse a quem doesse, mas a mensagem é a de que não houve sua aplicação imparcial. Fica a impressão de que o Supremo foi quem, de fato, “derrotou o bolsonarismo”. Sob o argumento de tutelar a democracia, ela é atacada por dentro.
VEJA TAMBÉM:
O STF tem se colocado como Poder Supremo, acima de outros Poderes, como se fosse um poder moderador. Entretanto, a fala de Gilmar revela algo pior do que a supremacia do STF sobre os demais poderes: quando o STF elege um presidente, ele se coloca acima do próprio povo. A Constituição precisa ser emendada para refletir a realidade: neste país, todo poder emana do STF. No iluminismo supremo, poder emanado do povo é coisa ultrapassada.
Não há freios e contrapesos quando metade do Senado é ou foi investigada pelo STF. O Senado fica acovardado. Os ministros do Supremo não estão sujeitos à fiscalização do CNJ nem de ninguém. Colocam-se como Poder Supremo acima de tudo e de todos. Há um escancarado desequilíbrio entre Poderes que precisa ser equacionado. Enquanto isso não acontecer, seguiremos vendo poucos supremos substituindo o povo nas decisões sobre os rumos da nação.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos