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Em 2017, o mundo político brasileiro aguardava, em suspense e com ansiedade, o que aconteceria após a assinatura do acordo de leniência da Odebrecht, que carregava o explosivo apelido de “delação do fim do mundo”. O ex-presidente da República José Sarney, um ano antes, resumiu com perfeição os temores da classe política com a delação da rainha das empreiteiras, ao ser flagrado em gravação dizendo ao também delator Sérgio Machado que a “Odebrecht vem com uma metralhadora de ponto 100”.
O pavor dos políticos não era sem razão: a Odebrecht entregou provas dos crimes cometidos contra a Petrobras e outras estatais. Houve 78 executivos da empresa que também fecharam delação. A empreiteira mencionou 415 políticos de 26 partidos - quase um terço dos ministros e senadores e quase metade dos governadores de então. As famosas planilhas da Odebrecht com os codinomes dos políticos se tornaram célebres e entraram no imaginário popular.
A culpa de cada um no cartório, é claro, depende da avaliação dos supostos fatos e, em seguida, eventual investigação, acusação, condenação e trânsito em julgado, tudo isso depois de infinitos recursos em quatro instâncias - ou seja, nunca. Contudo, os apelidos geraram constrangimentos. Além disso, quando os apelidos eram associados a pagamentos feitos pelo “Setor de Operações Estruturadas” - departamento de pagamento de propinas -, havia um indício inicial de ilícito que merecia ser investigado, quer para confirmá-lo, quer para afastá-lo.
O pavor dos políticos não era sem razão: a Odebrecht entregou provas dos crimes cometidos contra a Petrobras e outras estatais. Houve 78 executivos da empresa que também fecharam delação
Na lista de apelidos que se tornou pública tinha o “Atleta” ou “Justiça”, vinculado a Renan Calheiros; o “Babel” era Geddel Vieira Lima, aquele do apartamento com malas e caixa com cinquenta milhões em dinheiro vivo; a “Amante” era Gleisi Hoffmann; o “Amigo”, Lula; o “Belém” ou “M&M”, Geraldo Alckmin; o “Brigão” ou “Piloto”, Beto Richa; o “Caranguejo”, Eduardo Cunha; o “Caju”, Romero Jucá; o “Esquálido”, Edison Lobão; o “Guerrilheiro”, José Dirceu; o “Italiano”, Palocci, enquanto o “Pós-Italiano”, Guido Mantega; o “Mineirinho”, Aécio Neves; o “Proximus”, Sérgio Cabral e havia muitos mais apelidos e personagens.
Dentre as provas entregues pela Odebrecht, estavam cópias dos sistemas Drousys e MyWebDay, em que o Setor de Operações Estruturadas registrava codinomes, valores, contas bancárias e datas de entrega de supostos repasses bilionários de propinas que teriam feito a festa (e as campanhas eleitorais) de caciques de todo o Brasil. No entanto, 5 anos depois da delação do fim do mundo, as provas entregues pela Odebrecht dos pagamentos de propina têm sido sistematicamente anuladas pelo STF de modo equivocado, o que tem beneficiado políticos investigados de todas as cores e bandeiras partidárias.
Apenas na semana passada, o ministro Dias Toffoli anulou as provas da Odebrecht em 21 casos diferentes, em decisões que beneficiaram, entre outras pessoas, políticos como Beto Richa e seu irmão Pepe Richa, o ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho, o ex-presidente do Instituto Lula Paulo Okamotto e até mesmo quatro delatores da própria Odebrecht, que confessaram seus crimes para a Justiça. Curiosamente, o próprio Dias Toffoli tinha na empreiteira o apelido “amigo do amigo de meu pai”, dado por Marcelo Odebrecht, conforme revelado em 2019 pela Revista Crusoé.
Ao anular as provas entregues pela Odebrecht, o ministro Dias Toffoli aparenta estar continuando à perfeição a missão iniciada pelo ex-ministro do STF favorito de Lula e do PT, Ricardo Lewandowski, que foi quem primeiro anulou as evidências incriminadoras do Drousys e do MyWebDay. As decisões de Lewandowski inicialmente beneficiaram - finja surpresa - o hoje presidente Lula. Em seguida, foram sistematicamente estendidas para diversos políticos, como Geraldo Alckmin, Antonio Palocci, Paulo Skaf, Eduardo Paes, Paulo Bernardo, Edison Lobão, além de outras figuras carimbadas do cenário político e empresarial brasileiro.
Na discussão aprofundada do caso feita em fevereiro de 2002, o que gerou o precedente que está sendo estendido a rodo hoje, os argumentos para anular provas tão importantes de corrupção e lavagem de dinheiro foram esdrúxulos e venceram por apertada maioria de três votos a dois. Anularam as provas os ministros Lewandowski, Gilmar Mendes e Nunes Marques. Opuseram-se André Mendonça e Fachin. Este último fez uma longa análise do caso, afastando cada alegação daqueles que enterravam as provas de corrupção.
Apenas na semana passada, o ministro Dias Toffoli anulou as provas da Odebrecht em 21 casos diferentes
Um dos pontos debatidos no julgamento foram supostas “tratativas irregulares” entre procuradores brasileiros e estrangeiros, por conta de conversas e mensagens trocadas que não foram formalizadas em documentos. Balela pura: o acordo de leniência da Odebrecht foi formalizado em conjunto com autoridades dos Estados Unidos e da Suíça, que participaram das conversas feitas do mesmo modo, e as provas obtidas no acordo até hoje são válidas e embasam investigações e condenações em países como Equador, Peru e Panamá. Apenas no Brasil, que faz questão de fazer tudo ao contrário do resto do mundo democrático civilizado, essas provas são anuladas para garantir a impunidade dos corruptos.
Além disso, a conversa e troca de informações entre autoridades estrangeiras por telefone, e-mail ou outros meios tem base legal em tratados internacionais e é recomendada por todos os manuais de cooperação internacional. O que se exige é que as provas, quando são usadas nas investigações e processos formais contra suspeitos e acusados, sejam enviadas e recebidas por “canais oficiais”, como o Ministério da Justiça, a Procuradoria-Geral da República ou o Ministério das Relações Exteriores, como de fato sempre foi feito.
É preciso distinguir claramente conversas investigativas e o trâmite de documentos pelos “canais oficiais”. Imagine-se que a polícia portuguesa toma conhecimento do transporte de drogas que estão ingressando num porto brasileiro. O que ela faz? Contata diretamente a polícia brasileira e passa a informação, para acompanhamento dos suspeitos e apreensão do material. O contato pode ser por telefone ou mensagens. Seria absurdo exigir o envio de uma carta, ou a formalização de uma ata sobre a conversa, e a tramitação burocrática disso pelos Ministérios da Justiça de ambos os países. Se assim fosse, após vários carimbos e medidas burocráticas, a carta seria inútil porque a droga já teria ingressado e desaparecido no Brasil.
O que a lei exige é que, em regra, eventuais documentos ou testemunhos que se pretenda utilizar em inquérito ou processo sejam enviados formalmente, num segundo momento, por meio dos “canais oficiais”. Assim, é normal que não se documentem contatos investigativos, embora a produção de provas, num segundo momento, fique sujeita à burocracia. No próprio Supremo, os ministros conversam com advogados, policiais, procuradores e outras autoridades todo tempo sobre assuntos oficiais sem formalizar os contatos. A formalização acontece quando a lei exige, como, por exemplo, quando o advogado pretende que o ministro decida sobre um pedido, o qual deve ser documentado.
Nunca vi uma operação internacional de combate ao tráfico ser anulada com o argumento usado no caso Odebrecht. Ah, é claro, no caso Odebrecht não se está tratando de criminosos de rua. Está-se tratando dos criminosos do colarinho branco e, para eles, a lei é outra, ou então se muda a lei. Por eles, acaba-se com prisão em segunda instância, muda-se a Justiça que julga corrupção política e tudo pode ser alterado para que tudo fique como está.
E esse é justamente o problema do Brasil. O Estado de Direito é fraco e o Estado de Pessoas é forte. O império da lei é suplantado pelo império de pessoas. O Direito já foi pelo ralo com a Constituição e a Lei. O Brasil tem dono, os donos do poder. A metralhadora ponto 100 da Odebrecht não contava com as muitas proteções para os corruptos que existem no Brasil. Nesse contexto, vem à mente outra gravação feita pelo delator Sérgio Machado, desta vez com Romero Jucá, em que falaram sobre a necessidade de “mudar o governo para poder estancar essa sangria” causada pela Lava Jato. Machado falou então num “grande acordo nacional”. E Jucá completou: “com o Supremo, com tudo”.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima