| Foto: Joédson Alves/EFE
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Ontem o STF começou a julgar a constitucionalidade do “orçamento secreto”, que foi questionado por PSOL, PV, PSB e Cidadania. A ministra Rosa Weber, primeira a votar, julgou a prática incompatível com a Constituição, entendendo que esse tipo de emenda deveria ser reservada apenas para corrigir erros e omissões, e não para criar novas despesas públicas.

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Segundo a ministra, a falta de transparência sobre o proponente das emendas viola os princípios da transparência, impessoalidade, moralidade e publicidade. A prática retira ainda racionalidade na distribuição de recursos, prejudicando o equilíbrio entre União, estados e municípios. Por fim, privilegia eleitoralmente certos parlamentares que as recebem.

Três perspectivas são necessárias para compreender o orçamento secreto: de governabilidade, de fisiologismo mais corrupção e de ineficiência de políticas públicas. Primeiro, o orçamento secreto tem sido usado como um mecanismo de governabilidade, uma moeda de troca do presidente com o parlamento.

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Em nosso presidencialismo de coalizão, o presidente precisa formar uma coalizão ou base de apoio no Congresso. Só assim alcança “governabilidade”, ou seja, a capacidade de aprovar leis no Congresso necessárias para o presidente executar seu plano de governo.

A prática retira ainda racionalidade na distribuição de recursos, prejudicando o equilíbrio entre União, estados e municípios. Por fim, privilegia eleitoralmente certos parlamentares que as recebem.

No mundo ideal, parlamentares apoiariam boas propostas para o Brasil e rejeitariam as que considerassem ruins. No Brasil real, o fisiologismo impera: muitos partidos e parlamentares estão dispostos a apoiar qualquer governo ou proposta desde que seus interesses sejam satisfeitos, instalando-se o “toma lá, dá cá”.

Uma das formas que esse fisiologismo assume é a concessão pelo presidente, em favor de parlamentares que o apoiam, de recursos que são destinados para a base eleitoral do parlamentar, que é a região em que teve votos. Essa destinação se dá por meio de emendas ao orçamento.

O orçamento estima as receitas e programa as despesas públicas dos anos seguintes. Após sua elaboração com a participação dos três Poderes e coordenada pelo Poder Executivo, ele é aprovado na forma de lei pelo Congresso Nacional.

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Ao longo da análise e execução do orçamento, senadores e deputados federais podem propor modificações, as chamadas emendas parlamentares, alterando as estimativas de receita ou a destinação e o montante das despesas.

Até 2015, a possibilidade de um congressista fazer emendas para destinar recursos à sua base eleitoral dependia do assentimento do presidente da República. Naquele ano, as emendas parlamentares individuais, de cada deputado ou senador, tornaram-se impositivas, isto é, obrigatórias. Por não dependerem mais do presidente, este perdeu um mecanismo de governabilidade.

O presidente Bolsonaro iniciou seu governo com a promessa do fim do “toma lá, dá cá”, mas logo a realidade se impôs. Em 2019, sua taxa de sucesso legislativo foi de 31%, a menor desde a Constituição de 88. Isso significa um baixo sucesso na aprovação de suas propostas no Congresso.

No Brasil real, o fisiologismo impera: muitos partidos e parlamentares estão dispostos a apoiar qualquer governo ou proposta desde que seus interesses sejam satisfeitos, instalando-se o “toma lá, dá cá”

Para reverter esse problema de governabilidade, o governo abriu espaço para o Centrão, um grupo de partidos e parlamentares que trabalham com base no toma lá, dá cá, e assentiu que parlamentares direcionassem mais recursos do orçamento a suas bases por meio das emendas parlamentares do relator do orçamento no Congresso, as chamadas RP9, que não são impositivas ou obrigatórias.

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Essas emendas de relator foram apelidadas de “orçamento secreto” porque podem esconder, e grande parte delas escondeu até recentemente, quem é o parlamentar beneficiado e qual o critério de sua distribuição pelo governo.

A segunda perspectiva é a do fisiologismo mais corrupção. As duas funções centrais dos parlamentares, teoricamente, são legislar e fiscalizar. Contudo, ao rodar por prefeituras do interior, o que mais se pede aos parlamentares é que levem recursos por emendas e despachem pedidos dos municípios em ministérios.

Quando um parlamentar leva recursos para um município ou despacha seus pedidos, favorece a gestão de um prefeito ou o mandato de um vereador, assim como a população daquela região. Em contrapartida, muitos se comprometem a trabalhar em favor da reeleição do congressista.

O impacto pode ser significativo, tanto para o governo local como para a reeleição. O senador Davi Alcolumbre, que teria direito a cerca de R$ 16 milhões em emendas individuais impositivas, conseguiu destinar R$ 277 milhões do Ministério do Desenvolvimento Regional, o que demoraria 34 anos no Senado para distribuir a partir de suas emendas individuais.

O valor corresponde ainda a 62 vezes o que poderia gastar como candidato ao Senado, limitado em R$ 4,4 milhões, o que gera desequilíbrio nas disputas eleitorais e dificulta a renovação política. Os principais partidos do Centrão contaram com R$ 6,2 bilhões em recursos de emendas de relator, o que supera os R$ 5,7 bilhões do fundo eleitoral.

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Como resultado desse sistema de emendas, municípios disputam entre si a eleição de parlamentares que vão levar mais recursos para a região, preocupando-se em aumentar a sua fatia do bolo, em vez de focar em eleger parlamentares que aumentem o tamanho do bolo criando condições mais propícias para o desenvolvimento econômico.

Assim, o fisiologismo, que acontece também na base, tem um preço. Isso porque a obtenção de emendas de relator junto ao governo normalmente acontece por meio de um acordo político em que congressista se compromete a apoiar o governo ou propostas deste.

O governo consegue, como consequência, apoio para aprovar o aumento de despesas ou de tributos sem fazer cortes de cargos e privilégios ou aumentar a eficiência governamental por meio de reformas necessárias.

Passam, assim, medidas como a PEC da transição, o aumento de tributos e a mudança recente na lei das estatais que prejudica a governança corporativa e derruba barreiras criadas para impedir um novo Petrolão. Com o fisiologismo, poucos ganham e muitos perdem.

Outro problema é a corrupção. Num ambiente altamente corrompido, investigações já comprovaram que muitos parlamentares recebem de volta uma parte significativa do dinheiro que destinam via emendas parlamentares, sejam individuais ou de relator, o que é chamado de “a volta”. No caso do orçamento secreto, o desvio pode acontecer sem que se sabia qual parlamentar foi o beneficiado, o que favorece a farra com o dinheiro público.

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A cidade de Santa Quitéria do Maranhão, com 25 mil habitantes, recebeu destinações e declarou ter feito em um ano mais de 3 mil exames de HIV, número superior ao de São Paulo, com 12 milhões de habitantes.

A cidade de Igarapé Grande, com 11 mil habitantes, também beneficiada com o Orçamento Secreto, inflou seus atendimentos do SUS de 123 mil para 761 mil de um ano para o outro. O número de consultas com especialistas por habitante foi de 34, número superior ao recorde mundial da Coreia do Sul, de 17 consultas por habitante.

O caso mais emblemático é o de Pedreiras, agora conhecida como a cidade dos banguelas, porque recebeu recursos do Orçamento Secreto e informou ter feito 540 mil extrações dentárias em 2021, o que dá uma média de 14 dentes extraídos de cada um de seus 39 mil habitantes.

Vários outros escândalos como esses deverão vir à tona nos próximos anos. Hoje, a CGU investiga suspeitas de desvios de verbas do Orçamento Secreto em 500 municípios.

A terceira perspectiva importante para compreender o orçamento secreto é a de ineficiência das políticas públicas. Serviços públicos como saúde, educação, saneamento e segurança precisam ser feitos com planejamento em cima de dados, de um bom diagnóstico de problemas e das melhores práticas e soluções.

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Quem está em melhor posição para estudar e decidir quais são as prioridades e onde aplicar os recursos, por isso, é o gestor especializado do Poder Executivo Federal, Estadual ou Municipal, que reúne conhecimento e experiência, e não o parlamentar que tem o natural interesse de beneficiar suas bases eleitorais, sem transparência e sem a necessária avaliação de políticas e prioridades com base em evidências.

Além disso, as emendas orçamentárias acabam fragmentando a aplicação de verbas para despesas menores como, por exemplo, comprar ambulâncias, viaturas policiais ou reformar praças, em detrimento de grandes projetos de infraestrutura que são necessários para alavancar o crescimento econômico do país e trarão frutos mais abrangentes em termos de emprego e renda.

Some-se que grande parte do orçamento federal tem como destino despesas obrigatórias, vinculadas, como pagamento de pessoal, previdência, saúde e educação. Essas despesas representam 93,7% do orçamento de 2023. Sobra pouco para investir. Em 2022, as emendas parlamentares somaram 24% das verbas discricionárias, inviabilizando programas como a Farmácia Popular.

Verbas de emendas, utilizadas em geral com baixa eficiência, poderiam ser remanejadas. As emendas parlamentares individuais, de bancadas e de comissões previstas para 2023 somam R$ 234 bilhões, valor superior ao da PEC da Transição. A parte das emendas individuais corresponde a R$ 11,7 bilhões. O orçamento secreto está previsto em R$ 19 bilhões.

Assim, é importante que o Supremo restrinja o orçamento secreto, na linha do voto da ministra Rosa Weber, mas isso não vai resolver todo o problema das emendas, que vai para além dos problemas do orçamento secreto.

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Quando falamos de emendas de forma geral, o buraco é mais embaixo: é de fisiologismo, de corrupção, de ineficiência alocativa e de buscar mecanismos de governabilidade no Brasil.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]