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“Um mau começo leva a um mau fim”, disse, muito sabiamente, o dramaturgo e poeta grego Eurípides (480-406 a.C). E nada recentemente teve um começo tão ruim quanto a investigação determinada pelo Supremo Tribunal Federal contra a família Mantovani, suspeita de agredir o ministro Alexandre de Moraes e seu filho na Itália. O que começou com um provável desentendimento entre as famílias na área vip do aeroporto de Roma está se tornando, aos poucos, um exemplo perfeito de como os donos do poder se utilizam do aparato estatal para, do topo de seus cargos, subjugar, oprimir e perseguir, de forma absurda, autoritária e ilegal, aqueles que os desagradam.
A mais recente e talvez pior ilegalidade desse caso foi a decisão do ministro Dias Toffoli, do STF, que autorizou o ministro Alexandre de Moraes, sua esposa e seus filhos a atuarem como “assistentes da acusação”, muito embora a Procuradoria-Geral da República não tenha sequer apresentado acusação formal contra alguém neste caso. Por que essa decisão demonstra que Toffoli já condenou a família Mantovani? A lei permite que as vítimas de crimes possam atuar durante a tramitação de uma ação penal para fazer valer seus direitos, podendo, por exemplo, sugerir provas, solicitar perícias, fazer perguntas às testemunhas, participar dos debates orais e recorrer das decisões.
A decisão de Toffoli que colocou Moraes como assistente de acusação tem um problema imenso que vai muito além da questão formal prevista na lei.
A lógica da lei é garantir que a vítima tenha voz no processo penal e possa atuar diretamente para impedir, por exemplo, a absolvição indevida de um criminoso. Por isso, só há assistente de acusação depois de se definir quem é vítima e quem é criminoso. Isso é definido no momento da acusação formal, da chamada “denúncia”, e não quando o caso ainda está na fase de investigação.
De fato, é no momento da denúncia que o Ministério Público aponta sua conclusão sobre a investigação, acusando alguém da prática de um crime e indicando as provas que o levaram a tal conclusão. Assim, é só a partir desse momento da “denúncia” que se sabe quem foi o autor do crime e quem foi a vítima. Antes da denúncia, há meras hipóteses a serem investigadas. Nesse sentido, o Código de Processo Penal é claro, no artigo 268, ao estabelecer que o assistente de acusação pode atuar nas fases da “ação pública”, que se instaura após o juiz receber a denúncia feita pelo Ministério Público.
O relator do caso no STF já adotou um lado: o de Moraes. Toffoli mandou às favas a investigação das duas hipóteses e já prejulgou qual é a verdadeira.
A razão disso tudo fica clara no caso da família Mantovani: como está na fase de investigação, nem a polícia nem o Ministério Público chegaram a conclusões sobre o que de fato aconteceu. Sobre a suposta agressão no aeroporto de Roma, há acusações trocadas de lado a lado. Há, por isso, duas versões ou hipóteses investigativas.
De um lado, o ministro Alexandre de Moraes diz que foi chamado de “bandido” e “comunista” e afirma que o empresário Roberto Mantovani teria dado um tapa em seu filho e derrubado seus óculos. Se essa versão se confirmar, a família Mantovani pode ser acusada como criminosa e o ministro e sua família seriam vítimas.
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De outro lado, a família Mantovani diz que eles foram xingados e agredidos verbalmente pelo ministro. Um vídeo da briga que mostra Alexandre de Moraes chamando alguém de “bandido” foi divulgado recentemente nas redes sociais. Se essa versão se confirmar, é o ministro que pode – em tese, se a Justiça fosse cega – ser acusado como criminoso, enquanto a família Mantovani seria vítima.
O caso pode acabar ainda com um choque de versões, o famoso “diz que-diz que”, a palavra de um contra a do outro. Nesse caso, ninguém será considerado acusado e ninguém será considerado vítima. O caso será arquivado por não haver provas suficientes que permitam chegar à conclusão sobre o que aconteceu.
A decisão de Toffoli que colocou Moraes como assistente de acusação tem um problema imenso que vai muito além da questão formal prevista na lei. O problema é que ela demonstra que o relator do caso no STF já adotou um lado: o de Moraes. Toffoli mandou às favas a investigação das duas hipóteses e já prejulgou qual é a verdadeira. Ao aceitar o ministro como assistente de acusação, Toffoli passa uma mensagem clara de que Moraes e sua família são as vítimas, descartando por completo os depoimentos da família Mantovani, que passaram a ser tratados como criminosos antes da conclusão das apurações. É quase como se a família Mantovani já tivesse sido denunciada, julgada e condenada, e o STF estivesse apenas cumprindo os passos de um checklist para, no fim, poder colocar todos na cadeia e jogar a chave fora, num julgamento em tempo recorde e com penas desproporcionais como fez quando julgou inimigos da Corte como Daniel Silveira e os réus do 8 de janeiro.
Vemos o esfacelamento do império das leis, substituído gradativamente pelo império das pessoas, dos donos do poder no Brasil.
Nesta segunda-feira (30), a PGR recorreu da decisão de Toffoli, afirmando, corretamente, que se tratava de um privilégio pessoal incompatível com a democracia admitir Alexandre de Moraes como assistente de acusação, além de ser um desrespeito às funções constitucionais do Ministério Público, único órgão com poder de dar início à ação penal.
O prejulgamento do Estado contra a família Mantovani transpassa todo esse caso. Embora haja diferentes versões do episódio, foi a família Mantovani que foi recebida pela Polícia Federal assim que chegou ao Brasil e foi levada para prestar depoimento. O mesmo não aconteceu com o ministro Alexandre de Moraes. Em seguida, houve um direcionamento ilegal do caso para ser julgado pelo amigo – ops, é que ele tem fama de “amigo” – colega Toffoli no STF. Os Mantovani são cidadãos comuns, empresários, sem foro privilegiado. Não há foro privilegiado pela condição da suposta “vítima”. É um absurdo que o colega de Moraes julgue o caso.
Já tínhamos visto corruptos usurparem o poder, agora vemos a escalada do arbítrio judicial.
Os Mantovani foram, também, alvos de medidas invasivas como buscas e apreensões, o que é absolutamente sem precedentes na história do Brasil para investigar um possível xingamento. Em 18 anos como procurador, jamais vi nada parecido para apurar crimes contra a honra. A medida tem cara de pesca probatória (fishing expedition) para procurar outra coisa que incriminasse a família. Não houve buscas sobre o ministro Alexandre.
Como se já não fosse muito, as imagens do aeroporto chegaram ao Brasil, mas Toffoli negou acesso à defesa para cópia e impôs sigilo sobre o material, quando, como bem afirmou a Procuradoria-Geral da República, não há razão para sigilo. Fica feio, mais uma vez. Parece que se quer controlar a versão dos fatos que vai a público. A decisão de Toffoli pode ter a ver com o fato de que a polícia italiana desmentiu a versão do ministro Alexandre, ao dizer que não houve agressão ao filho do ministro, apenas um leve encostar nos óculos do rapaz. Segundo os advogados dos Mantovani, as autoridades italianas não enxergaram crime no imbróglio.
E em mais uma demonstração de falta de imparcialidade da atuação da Justiça, a polícia judiciária brasileira quebrou os protocolos no seu trabalho. A análise das imagens foi feita por um agente, e não por um perito. Um perito acusou a irregularidade e foi instaurada uma investigação – não contra quem cometeu a irregularidade, mas contra o perito que a apontou! Segundo a revista Veja, o diretor-geral da Polícia fez chegar a tal perito a mensagem de que ele estaria atrapalhando e ajudando os supostos agressores de Moraes. Se isso for verdade, mostra, para além da parcialidade do trabalho da polícia, uma interferência política do governo Lula nas investigações, em favor de Moraes.
Tudo é muito grave. O recurso da PGR é um alento, mas vemos o esfacelamento do império das leis, substituído gradativamente pelo império das pessoas, dos donos do poder no Brasil. Já tínhamos visto corruptos usurparem o poder, agora vemos a escalada do arbítrio judicial.
Pobre país. Já houve imensas injustiças cometidas na cúpula do Judiciário, sucedendo àquelas do Congresso, mas ainda há tempo de evitar que mais essa investigação, que teve um péssimo início, tenha um final pavoroso reservado para os inimigos do STF: penas injustas e desproporcionais para pessoas sem culpa demonstrada.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos