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Publicado originalmente na Gazeta do Povo de 14 de maio:

Diz a lenda que Gustav Mahler estava um dia mostrando no piano, para sua esposa, Alma, aquilo que seria a sua Quarta Sinfonia. Depois de um tempo, Mahler perguntou a ela se gostava do que estava ouvindo. A resposta: “Acho que Haydn fez melhor”. Não deixa de ser uma resposta irônica, já que Haydn é um dos grandes nomes da música sinfônica. Mas Mahler não deixou por menos. “Você vai viver o bastante para mudar de opinião”, disse.

Embora Mahler fosse um homem cheio de angústias, aparentemente ele tinha convicção de que seu trabalho como compositor era importante. Como regente, recebeu as honrarias devidas ainda em vida. Foi escolhido para o posto mais importante possível, como diretor da Ópera de Viena. Como compositor, foi elogiado, inclusive por grandes nomes da época. Mas sabia que ainda era subestimado. “Meu tempo vai chegar”, teria dito.

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E ele estava certo. O tempo de Mahler chegou. Desde o ano passado, quando se comemoraram os 150 anos de seu nascimento, poucos compositores foram tão tocados em todo o mundo. Neste ano, com a memória do centenário de sua morte, as homenagens continuaram. Não houve orquestra importante no planeta que não fizesse programas com obras dele. Ciclos inteiros foram montados. Discos saíram em profusão. Livros tentam explicar o fenômeno. Mahler é um sucesso.

Mas como isso aconteceu? Em que momento o compositor passou à condição de “pop star” da música erudita? O processo foi lento, mas começou nos anos 60, quando já haviam transcorrido cinqüenta anos desde a morte de Mahler. Depois, a cada década, seu nome foi se tornando mais importante e mais popular, até chegar ao ponto de poder se dizer, hoje, que, depois de Beethoven, talvez seja o autor de sinfonias mais tocado no mundo.

Para o maestro Osvaldo Colarusso, o fenômeno tem relação íntima com a própria melhoria das orquestras mundo afora. “Tocar as obras de Mahler não é simples. As orquestras hoje têm muito mais capacidade de enfrentar os problemas que ele propunha, o que facilita sua popularidade”, afirma. Na verdade, nesse sentido, tocar Mahler se tornou até uma demonstração de vigor por parte das grandes orquestras.

As técnicas de regência modernas também facilitaram o acesso a Mahler. “Os maestros no início do século 20 não tinham o treinamento que têm hoje. Eram bons músicos que se dispunham a fazer o trabalho. Mas ir a um conservatório, frequentar um curso de regência, como vemos hoje, é uma prática recente”, afirma o compositor Harry Crowl, residente em Curitiba.

Para ele, só um regente bem treinado consegue enfrentar desafios como o início da Nona Sinfonia. A harpa, um trombone e um violoncelo começam a obra. “Se você ouve isso em disco, jamais vai perceber. Mas, ao vivo, você vê que cada um está em um ponto muito distante do palco. E os sons não chegam juntos ao regente. É difícil conciliar isso”, diz Harry Crowl. Em parte, isso tem relação com o fato de que ele escrevia as sinfonias para que ele próprio (um regente de muito talento) as regesse.

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O surgimento da indústria fonográfica já foi levantado como um dos possíveis fatores que facilitaram a absorção de Mahler. E outros pontos contribuíram. Como, por exemplo, o sentimento de caos que permeou boa parte do século 20, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. A música de Mahler, em certo sentido, “combina” com esse caos.

Por um lado, Mahler ainda é um homem do século 19. Escreve seguindo a tradição dos grandes românticos, desde Beethoven até seu mestre mais direto, Anton Brückner, com quem conviveu em Viena. Por outro, Mahler vive na Áustria ao mesmo tempo que Sigmund Freud e chega a conhecer os homens que revolucionarão a música depois dele, como Arnold Schönberg e Alban Berg. E, de certa maneira, também é influenciado por esse “novo mundo” do século 20.

Não à toa, Mahler é chamado de pré-expressionista. Sua música às vezes deforma propositadamente melodias, formas, como se para mostrar que o mundo está deformado. Embora ainda escreva música tonal (o que certamente facilita que o público aceite sua obra), leva a harmonia tradicional a um limite que mostra possibilidades para o futuro.

Romântico e moderno ao mesmo tempo, Mahler representaria, para o ouvinte do século 20, uma espécie de “atualização” da música clássica de uma maneira que ainda é palatável mesmo para quem não consegue se adaptar a modernismos mais radicais. Mahler se transformou no romântico radical, ou no moderno que ainda é compreensível para o ouvinte comum.

“Curioso é que ele não tinha como saber que tudo isso iria acontecer.” Mesmo assim, tinha certeza de que ‘seu tempo chegaria’”, diz Harry Crowl. De um jeito ou de outro, Mahler estava certo. Chegou ao início do século 21 como um dos mais populares compositores de todos os tempos. Alma Mahler talvez não tenha vivido o suficiente. Mas quem viveu viu o mundo inteiro mudar de idéia sobre a obra de seu marido.

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