No século 17, as pessoas levavam os presságios muito a sério. Ok, ainda hoje tem gente que vai a cartomantes e coisas do gênero. Mas na época, a coisa era bem diferente. Era o suficiente, por exemplo, para o personagem da peça de Calderón de La Barca decidir que seu filho deveria crescer isolado do mundo, numa prisão, pelo perigo que representava.
A ideia do rei Basílio surgiu depois de alguns pesadelos de sua mulher durante a gravidez. E, além de tudo, a criança veio ao mundo num dia de eclipse: até o Sol se apagou quando o menino nasceu… Portanto, o melhor era botar mesmo na masmorra e evitar que o guri se transformasse no tirano que parecia estar vindo.
A peça começa justamente com Segismundo (provavelmente uma tradução de Sigmund), sem saber que é herdeiro do trono da Polônia, em um castelo isolado do mundo. Lá, apenas um criado o educa, fala com ele e atende a suas necessidades. É quase um homem-bicho. Mas, claro, como exigiam a métrica e a rima da peça, culto o suficiente para falar com estilo…
A trama acontece quando o rei, sem saber afinal se os presságios faziam ou não sentido, decide dar uma chance ao herdeiro, já adulto. Vai sedá-lo, tirá-lo da prisão e deixar que governe por apenas um dia. Se for bom governante, ganha o trono. Se for o tirano que se imaginava, será sedado de novo e devolvido ao cárcere. E tentarão convencê-lo de que tudo aquilo, seu dia de rei, não passou de um sonho.
Claro que se trata de uma grande alegoria. Calderón de La Barca, um barroco empedernido, no meio da contrarreforma católica, estava pensando em um teatro filosófico, que não só retratasse o mundo de maneira simbólica como ajudasse a explicar d doutrina da Igreja. A Espanha, desde os reis Isabela e Fernando, era um grande centro católico da Europa. E o teatro da época mostra isso muitíssimo bem.
A ideia de que a vida é sonho é enunciada pelo próprio protagonista, no trecho mais famoso da peça.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.
A ideia é que só a vida fora do mundo (Deus, o Paraíso, o Juízo Final) é verdadeira. O mundo que vemos é uma ilusão. Estamos aqui sem ver o que importa realmente face a face.
E não é só o ideário religioso que está retratado ali. Calderón de La Barca também representa as disputas políticas da época. Estamos antes da Revolução Francesa. E o que está no ar ainda é o regime Absolutista. Para entender como as coisas funcionavam, a peça também é maravilhosa.
Por exemplo, o próprio fato de o rei ter a possibilidade de decidir se encarcera alguém pela vida toda (sem julgamento, sem provas, só presságios!) mostra o quanto de poder tinham os governantes de então.
E por isso o cuidado extremo do rei Basílio (apontado como um homem bom, é preciso ressaltar) em impedir que seu filho, possivelmente monstruoso, assuma o trono. Ele terá poder de vida e morte sobre todos. Mandará e desmandará, sem freios nem contrapesos.
A peça é um exemplo tremendo de poesia barroca bem escrita (é preciso pegar uma boa tradução). E funciona ainda hoje como alegoria, como história, para, como se diz, “prender” o leitor.
Afinal, é assim que são os clássicos: são escritos para o público de uma época, mas dizem tanto sobre nós que acabam ficando para sempre.
Serviço: “A vida é sonho”. Calderón de La Barca. A peça, em três atos, pode ser achada de graça no Google Books clicando aqui. E, melhor, a tradução para o português é bastante boa.
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