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Desde a primeira frase do livro você sabe que alguém vai morrer. Sabe quem vai morrer. E sabe quando vai morrer. Não há nada escondido: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às cinco e meia da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo”, diz a já clássica frase de abertura de “Crônica de uma morte anunciada”. Se o fato já é conhecido de cara, o que interessa não é saber o que vai acontecer. Mas o como. E o por quê. E isso García Márquez nos faz esperar mais um pouco para saber.

Mesmo isso, porém, não é exatamente o segredo. Logo se saberá, páginas adiante, que quem está atrás de Santiago, para matá-lo, são dois irmãos. Logo descobre-se também o motivo: eles acham que Santiago desgraçou a irmã deles, tirando-lhe a virgindade antes do casamento. E decidem acabar com ele como vingança. E isso realmente o que acontece.

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Mas se já se sabe quem matou, quem morreu e o porque de isso ter acontecido, para que continuar lendo o livro? E aí a única resposta possível é: e tente largar o diacho do livrinho depois que você começou… Quando alguém realmente sabe contar uma história, você pode já saber tudinho que está ali, pode até já ter ouvido ou lido aquilo e parece que não tem jeito: precisa ver, palavra por palavra, como é que aquilo aconteceu.

García Márquez conta a história como se fosse narrada por um ex-morador da pequena cidade onde tudo aconteceu que volta, 28 anos depois para entender os motivos daquele crime bárbaro. E parece na verdade que foi assim que tudo se passou. García Márquez realmente ouviu a história quando era mais novo e decidiu reconstituí-la em sua pequena novela, de 1981. Os fatos ocorreram, na verdade, em 1951, perto de Cartagena, na Colômbia natal do autor.

Em certo sentido, o livro se aproxima muito de “Ivan Ilitch”, o livro colocado neste espaço na semana passada. Também é a narrativa de uma morte, também desde o começo sabemos que o sujeito vai morrer e queremos saber o que se passa. Mas ao contrário de Tolstoi, García Márquez não está preocupado tanto com o sobrenatural, com a moral dos personagens. Quer mostrar, simplesmente, como um bárbaro assassinato pode ocorrer mesmo por motivos quase tolos.

Hoje já soa absurdo para qualquer um de nós que alguém morra por ter feito sexo antes do casamento. Mas não é só isso. A morte de Santiago Nasar tem outras circunstâncias ainda mais absurdas. Uma delas é que a moça que o acusa, depois de o noivo ter percebido que ela não era mais virgem, nunca havia dormido de fato com ele. E ninguém nunca irá entender porque foi do nome dele que ela se lembrou naquela hora.

Mais absurdo ainda, no entanto, é o fato de que toda a cidadezinha, praticamente, fica sabendo, desde a noite anterior, que os irmãos Vicario querem matar Santiago. Menos ele. Os irmãos são vistos fazendo os preparativos. Dizem o que vão fazer (quase como se quisessem ser impedidos). Ficam de tocaia num local em que podem ser vistos. Mas ninguém se lembra de avisar a vítima…

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Parece que o objetivo do livro (se é que um livro precisa de algo assim) é mostrar como alguém pode morrer (e mostra como isso é terrível, doloroso, inesquecível) por tão pouco, quase nada, ou nada mesmo. E ter suas tripas jogadas para fora, em praça pública, morrer sangrando como um porco sem nem saber por quê.

O livro, no entanto, não tem o ar mórbido que pode parecer aqui. A descrição do povoado, do calor tropical, dos tipos que rodeaim a cena, as imagens do casamento, dos irmãos, do próprio Santiago cantando a empregada doméstica antes de morrer, tudo faz parecer com uma cena quase tranquila. E talvez seja isso que torne a morte do personagem ainda mais dolorosa.

É um livrão. Vale ler.