Existem situações que você simplesmente não tem como imaginar. Precisa que alguém te conte com todos os detalhes. E mesmo assim você só consegue perceber em parte o que é viver aquela história, aquele mundo, se ele for muito distante do teu.
Eu, por exemplo, só fui entender o conflito de Ruanda quando li Philip Gourevitch (assunto da próxima semana). E só fui entender o que é realmente a vida em um país miserável quando li “O que é o que”, de Dave Eggers.
Ok. O Brasil é um país pobre. Existem áreas imensas de miséria urbana por aqui. Mas esse é o tipo de pobreza que eu conheço: favelas, alguma em situação terrível; a situação de algumas áreas abandonadas no Nordeste, por meio da tevê. Coisas do gênero.
O livro de Eggers fala de algo completamente diferente. Fala do Sudão. Onde a pobreza não é pontual. Nem restrita. Nem classificável. É extrema, absoluta, total e difícil de imaginar.
A história que o livro conta é a de um garoto, que hoje responde pelo nome de Valentino Achak Deng (ele não teve um nome bem definido, mas sim vários, que foi montando num mosaico ao longo da vida).
O garoto nasce num povoado no Sul do Sudão (que recentemtne se transformou no Sudão do Sul, o país independente mais pobre do mundo). E o livro conta como ele viveu a infância. Correndo até o rio para pegar água potável. Vivendo do comércio do pai dele, um dos homens importantes do local por ter uma tenda que vendia mantimentos.
A pobreza, lá, é isolada. Não se trata de uma área de contraste, ao lado de outra rica. Ou remediada. O que se vê, ao longe, é mais deserto. Mais pobreza. Mais desolação.
Para se ter uma ideia: quando os meninos (Valentino e outros) chegam ao Quênia, anos depois, o que os espanta é a opulência de uma cidade: por exemplo, com água corrente. Eles não conheciam nem mesmo isso.
Mas, se no começo, Valentino vivia num lugar pobre, logo a situação piora. Ele vai viver num lugar pobre e em guerra. O governo de Cartum, no Norte, patrocina um massacre de civis do Sul. Os sudaneses do sul são considerados outra gente, inferior, e começa uma guerra interna.
Claro que, como em todo país desse gênero, há um ditador. E que se impõe à força. E que, ao invés de gastar em estradas ou saúde pública, compra armas e munições.
Boa parte do livro conta a história do garoto, perdido de sua família, correndo pelo deserto, junto com outros meninos de sua idade, tentando arranjar o que comer; decidir que caminho tomar; passando por todo tipo de privação possível.
Depois, vem o campo de refugiados, um depois do outro. Até a fuga para o Quênia. E, depois, alguns poucos, entre eles Valentino, têm a sorte de ser enviados para os Estados Unidos.
Uma das coisas fantásticas no texto de Eggers é que, apesar de tratar de uma história terrível como essa, em nenhum momento ele se deixa derrubar pelo caminho mais fácil, do maniqueísmo ou do sentimentalismo.
Até chega a mostrar coisas curiosas, como o fato de que muitos “garotos perdidos” eram levados a aumentar ainda mais o seu drama, porque era isso que seus “salvadores” nos EUA queriam ouvir. Mesmo quem não tinha visto ou sido ameaçado por um leão no deserto, por exemplo, tinha de encaixar uma cena assim em sua história, para maior comoção.
E, quando Valentino chega aos EUA, as coisas não ficam miraculosamente resolvidas. Pelo contrário: o livro começa contando um assalto que o rapaz sofreu ao chegar na Geórgia, onde passou a morar. Ficou amarrado no chão do apartamento quase por um dia inteiro.
O livro é tremendamente importante para entender a história da África, dos povos árabes da região do Saara.
E, ao mesmo tempo, é literatura de primeiro nível. Vale ler.
Serviço: O livro tem uma tradução de Fernanda Abreu publicada no Brasil pela Companhia das Letras.
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