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O dia em que Sancho Pança virou governador
| Foto:
Gustave Doré/Reprodução
Sancho e Quixote: a dupla ideal.

Talvez a parte que eu mais goste do segundo livro do Quixote seja o trecho em que Sancho Pança, ainda que de mentirinha, vira governador. É uma das histórias mais divertidas primeiro porque alça Sancho, de vez, à condição de personagem principal por um tempo. E Sancho é o máximo. Sem Quixote por perto, ele ganha o holofote e se sai tremendamente bem.

Tudo começa porque uma duquesa e seu marido, o duque, acham divertida a história de Sancho quando descobrem que ele está com Quixote basicamente por ambição. Seu amo lhe prometeu o governo de uma ínsula caso eles deem sorte. E, nessa esperança, ele segue Quixote a quem, apesar disso, por vezes considera, como ele mesmo diz, “um mentecapto”.

O duque e a duquesa decidem testá-lo e se divertir ao mesmo tempo. Mandam Sancho governar uma cidade de mil habitantes que é posse deles. E, claro, põem algumas pessoas lá dentro a par da situação, até para que preguem as necessárias peças no governador. O governo de Sancho dura exatamente uma semana. E nesse período os capítulos dele são alternados com outros de um Quixote que se remói de saudade de seu ajudante.

No seu governo, Sancho é testado de várias maneiras. Primeiro, como juiz (temos que lembrar que antes da Revolução Francesa não havia a divisão de poderes como temos hoje. O governante fazia a lei, executava e até julgava, em alguns casos). Assim, Sancho logo se depara com histórias difíceis em que tem de dar respostas rápidas.

Famosa, por exemplo, é a história do sujeito que vai com um outro a Sancho dizendo que ele não devolve o dinheiro emprestado. O sujeito, um velhinho de bengala, jura que devolveu. Mas Sancho repara que ele só faz o juramento depois de passar a bengala para o outro, para poder se ajoelhar. E descobre o dinheiro dentro da bengala, ainda sem ser devolvido.

O modo como Cervantes trata seu personagem é fantástico. Ele parece se divertir em fazer de Sancho ao mesmo tempo um sujeito inculto e sábio. É um defensor da sabedoria popular, nesse sentido. E inicia uma tradição que vai levar a um molde repetido sempre na literatura brasileira, por exemplo: o do matuto engenhoso.

Mas o mais divertido, além das histórias em si, é o jeito como Sancho se comporta, aquilo que diz. Há um caso engraçadíssimo, por exemplo, de um sujeito que vai pedir coisas absurdas enquanto Sancho quer mais é comer e descansar. A história que o cidadão conta já é hilária. Quer um dote para que seu filho case com uma moça. E começa a descrever a moça, que diz ser belíssima, a não ser por alguns problemas, que vão aumentando de um jeito quase de comédia pastelão.

“A donzela é como uma pérola oriental, e olhada pelo lado direito parece uma flor do campo; pelo esquerdo, nem tanto, porque lhe falta um olho, rebentado de varíola; se bem que as bexigas do seu rosto são muito grandes, dizem os que lhe querem bem que aquelas não são bexigas, mas sepulturas onde se sepultam as almas dos seus amantes”, descreve ele.

E segue:

“Se fosse possível pintar a gentileza e a altura do seu corpo, seria uma coisa de grande admiração, mas não é, por causa de ela estar corcovada e tolhida, tendo a boca rente aos joelhos, mas ainda assim bem se dá a ver que, se se pudesse endireitar, daria com a cabeça no teto.”

As frases de Sancho enquanto isso são uma melhor do que a outra, na bela tradução de Sérgio Molina:

“Pintai o que quiserdes, pois eu me vou recreando na pintura e, se tivesse almoçado, para mim não haveria melhor sobremesa que o seu retrato.” Ou: “Agora, fazei de conta, irmão, que já a pintastes dos pés até a cabeça. Que é o que quereis de mim? Ide logo ao ponto sem rodeios nem ruelas, nem retalhos nem ensanchas.”

Sancho não só é um belo governador (do ponto de vista de Cervantes: do nosso ponto de vista, ele toma algumas decisões até meio bárbaras) como ainda é amado pelo povo. Satisfeito consigo mesmo, manda correspondência para sua mulher, Teresa Pança, avisando das boas notícias. Mas logo, quando tem de enfrentar uma guerra (falsa) percebe que aquilo tudo não é para ele.

E faz um discurso dizendo que cada um deve fazer aquilo que sabe, sem querer mais.

“Vossas mercês fiquem com Deus e digam ao Duque meu senhor que nu entrei no mundo e nu me acho; não perco nem ganho; quero dizer que sem um cobre entrei neste governo e dele saio sem nenhum, bem ao contrário do que costumam sair os governadores de outras ínsulas. E agora vossas mercês se afastem e me deixem ir, que me vou emplastrar, pois cuido que tenho todas as costelas amassadas, por mercê dos inimigos que esta noite se passearam sobre mim.”

Sancho, no próprio julgamento, e no de Cervantes, não serve para governador por não ter nascido para isso. É uma época aristocrática, e não podemos imaginar os leitores de Cervantes querendo ver alguém de classe baixa como governante (até hoje há quem pense assim, que dirá no século 17…)

Mas Sancho não sai por baixo. Apesar de servir de objeto de riso, é visto também como alguém sábio e inteligente. Parece que, se não forço a mão, Cervantes está dizendo que a sabedoria dele, sua pureza, o põem em alto lugar; faltava mesmo só pôr fim à distinção de classe para ele ser tanto quanto qualquer um.

Mas isso só viria duzentos anos depois, ou mais.

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