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Hoje recebi de um amigo um vídeo em que Leandro Karnal falava sobre liberdade e fiquei particularmente interessada por sua narrativa, principalmente porque nela Karnal remete a um texto de Etienne de La Boétie de que gosto muito (“O Discurso da Servidão Voluntária”) e também fala sobre Bauman, outro autor de quem gosto muito. Escutando o vídeo (sei que vídeo a gente , mas eu deixei rolando enquanto trabalhava porque por aqui está “corrido” também, gente!), comecei a pensar que um interessante tema para abordar por aqui seria a liberdade de crianças com autismo.

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A minha vontade de falar sobre liberdade se viu ainda mais nutrida a partir de uma publicação nas redes sociais em que uma mãe dizia não levar seu filho a tratamento por acreditar que isso seria tolher a liberdade dele de ser o que ele é e ela aceitava plenamente quem ele era. Percebo como de extrema importância que passemos a refletir sobre a liberdade da pessoa com autismo ser quem ela é e se isso seria ou não afetado por um tratamento para seu transtorno. Assim, coloco o questionamento: tratar uma pessoa autista limita sua liberdade de expressar seu verdadeiro eu?

Observe-se que o tratamento da criança autista visa, de certa forma, a limitar impulsos inatos de crianças autistas. E é, sim, um processo difícil para essa criança. A criança vê-se limitada do prazeroso ato de praticar suas estereotipias quando quer, de ter acesso às suas limitações quando quer e se vê constantemente tolhida de exercer suas vontades livremente. Nesse sentido, podemos até pensar que estamos reprimindo a liberdade da criança com autismo de ser quem é diante de nossa própria incapacidade de lidar com seus sintomas e buscando enquadrá-la em um perfil de uma criança neurotípica. Será? Pensemos melhor.

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O tratamento de crianças com autismo visa à independência, para que possam ser livres na sociedade. A ideia é conseguir adequar ao máximo seus comportamentos ao comportamento nerotípico, o que se faz necessário para conviver em sociedade e poder aos poucos viver sem ajuda de terceiros. Mas então o tratamento seria justamente a busca pela liberdade da criança? Sim. Educar uma criança, seja ela autista ou não, é conseguir ensiná-la conceitos éticos e informações necessárias para atingir sua independência e ser livre para conviver em sociedade de forma funcional. O tratamento da criança autista reprime não sua liberdade, mas seus impulsos não dotados de uma racionalidade real. Crianças em geral fazem “o que dá na telha”, buscando o prazer imediato, enquanto os pais as ensinam a controlar prazeres imediatos em busca da sua liberdade.

Uma criança quer subir na janela para ver o cachorrinho na rua e a mãe de imediato tolhe esse prazer, justamente porque quer ensinar à criança que ceder a esse prazer imediato é algo que está sendo feito sem avaliação dos riscos – neste caso, o risco seria a queda da janela que acabaria com qualquer possibilidade de felicidade. Tolher o prazer imediato é parte de um ensino em busca da felicidade e independência. Tratar um autista é justamente esse ensinamento: o controle de instintos primários para uma felicidade e independência reais, legando o caráter de liberdade. Observe-se que não se busca o enquadramento completo ao considerado “padrão”, mas sim a independência e o exercício racional das escolhas.

Assim, o tratamento do autismo busca a liberdade – não apenas conquistá-la, mas também como lidar com ela. A liberdade é maravilhosa, mas evidentemente causa angústia. Quem nunca entrou em uma loja, prometendo comprar apenas um sapato de salto, fica em dúvida entre um sapato preto e um vermelho, volta para casa e resolve escrever um texto para seu blog para conseguir aliviar a angústia? Quem nunca? Decidir causa angústia, principalmente entre um sapato vermelho com acabamento de veludo e um preto de verniz! Não que eu tenha passado por isso... Jamais.

Mas, falando sério, cada escolha é uma angústia e, se somos nós que escolhemos, nós ficamos angustiados. Afinal, se alguém escolhe um caminho e dá errado, você pode “culpar” a pessoa, mas, se você escolhe e dá errado... você só pode culpar a si mesmo. A escolha também demanda a desistência de algo: sorvete de abacaxi ou de uva? O fato é:se escolher abacaxi, eu vou deixar de ter o sorvete de uva. Liberdade e seu exercício consciente é um projeto de longo prazo em qualquer tratamento.

Embora seja aparentemente bonito o discurso de não tratar uma criança autista, de “deixá-la ser o que ela é”, a real questão do tratamento é que a criança possa vir a ter condições de exercer, em sociedade, sua real personalidade para além do autismo. A liberdade de qualquer pessoa não está em deixar seus impulsos fluírem livremente, mas em poder ter espaço de exercício de sua real personalidade. Que possamos permitir às pessoas autistas uma real liberdade, dotada da capacidade de escolhas, independência e compreensão real de que não há nada de errado em ser diferente. Torçamos para que, ao atingirem essa liberdade, nossos filhos tenham mais elevação que nós e superem nossa geração: que não tornem sua liberdade de escolhas escrava do desejo de consumo, do desejo de reafirmar suas próprias liberdades por meio de manifestações impensadas, da noção de que devemos ser iguais à massa para estarmos inclusos e sermos parte do todo.

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Quer sugerir um tema ou contar sua história? Quer partilhar como é ser autista ou sua vivência como pai/mãe de uma criança/adolescente com autismo? Vou adorar ouvir você! (contato@baptistaenascimento.com.br)

Hanna Baptista – redatora do Diário de Autista, advogada, e mãe de uma linda criança autista.