Olhares tortos na hora da matrícula na escola, em reação ao grito inesperado na pracinha e ao ouvir a fala que ainda vem titubeante. Brigamos e pleiteamos espaço em tudo que deveria ser natural: colégio, tratamento, tutor escolar. Lutamos para auxiliar os pequenos a aprender a olhar nos olhos, a falar, a se interessar pelo mundo a nossa volta. Ironicamente esse mundo tão cão que é o de quem luta por inclusão. É, para dizer o mínimo, natural que mães de crianças com autismo, como eu, percam a fé na humanidade e a ingenuidade de achar que o ser humano é bom por natureza, quando se apercebem da faceta cruel deste tal mundo. É inevitável.
Será?
Sentada em meu quintal, eu descrevia em uma petição de pedidos de tratamento os sintomas de uma criança com autismo. Meu marido, tentando alegrar minhas pequenas, ligou rapidamente a mangueira e a pressionou, fazendo jorrar pelo ar a água que ali encontrara um espaço menor para escapar e, portanto, dobrara de velocidade. De imediato, um arco-íris se formou. No mesmo momento, eu tomava um gole de café e o tempo parou naquele arco-íris. Talvez seja isso, talvez procuremos algum lugar além do arco-íris.
Contra a lógica, talvez mães de crianças autistas, onde deveriam amargar e endurecer, tornem-se como a ingênua – mas intrigante – menina Dorothy, de O Mágico de Oz. Um tornado veio num diagnóstico, nos atirou para longe de casa e fomos parar em “Oz”. Lá, em meio a nossas incertezas e medos, fazemos uma inevitável jornada em que tentamos arranjar um cérebro para o Espantalho, um coração para o Homem de Lata e a coragem para o Leão.
Dorothy não tem quem realmente a compreenda: o Espantalho não raciocina como ela, o Homem de Lata não sente como ela e o Leão não é corajoso como ela. Não podendo entender o que a mistura de coração, cérebro e coragem estão fazendo dentro de Dorothy nesse momento tão difícil de sua jornada, nenhum dos três, Homem de Lata, Espantalho ou Leão, poderia compreender de fato o quanto Dorothy precisa voltar para casa. Voltar é regressar à sensação de segurança. Segurança essa que o diagnóstico tirou.
Dorothy, Dorothy. Acompanhada e sozinha na estrada de tijolos amarelos, sonhando com algum lugar além do arco-íris.
Mas... e eu? Estaria procurando algo além do arco-íris? Me perco naquele pequeno fenômeno óptico gerado pela água e pela luz solar e pela mangueira no quintal. E poderia ficar lá a vida inteira, como se presa naquela cena, com o coração meio apertado, o cérebro um tanto confuso e a coragem vacilante. Um pouco acuada em mim mesma, quase sem querer, levanto meus olhos para além do arco-íris e logo atrás, sorrindo e pulando como só ela, está a Gabi, minha filha.
Sem as amarras das pressões sociais, sem forçar-se a corresponder às expectativas dos outros... Apenas sorrindo e pulando. Sorrindo e pulando. Ela é o pedido que eu fiz a uma estrela; ela derrete meus problemas em um gesto, como balinhas de limão na boca; ela, cujo pensamento está acima do topo de uma chaminé. “High above the chimney top that's where you'll find me, oh”. Ela é o que há além de meu próprio arco-íris.
No dia de conscientização sobre o autismo, não vou falar sobre os sintomas. Não vou falar sobre as mazelas que precisamos vencer. Não desta vez. Desta vez eu só vou sorrir, pensando em todas as “Dorothys” que conheço e todas as crianças que estão além do arco-íris, e rezar para que leões encontrem sua coragem, espantalhos encontrem seus cérebros e homens de lata encontrem seus corações, para que um dia todos nós, autistas ou não, tenhamos a sensação de que estar em sociedade é estar em casa.
Eu com meus sapatinhos vermelhos, sigo pela estrada de tijolos, cantando:
... Somewhere over the rainbow
Way up high
And the dream that you dare to
Oh, why, oh, why can't I, I? “
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