Que atire a primeira pedra quem nunca gastou mais do que podia no presente para seu filho e, no grande dia, ele brincou só com caixa e nem ligou pro presentão. Presentear crianças é sempre um desafio, mas é um desafio ainda maior para quem tem filho com autismo. Escutei de uma conhecida: “mas toda criança é difícil de presentear, eu mesma já dei um presente para o meu filho e ele gostou mais do laço”. E claro que eu respondi: “Não... Amiga, você não tá entendendo...”.
Como vocês já sabem (ou, se estiverem chegando agora, podem ler sobre isso em várias postagens daqui), eu tenho uma filha de 08 anos com autismo e uma filha neurotípica de 5 aninhos. A Débora, minha caçula, é infinitamente mais fácil de presentear. Só de cabeça, posso dizer uma lista de 5 brinquedos que sei que ela ia adorar: boneco dos Power Rangers, Barbie, LOL, casinha da Barbie, qualquer coisa que tenha a cara da Moana. Fácil. Já a Gabi tem interesses mais restritos, além de hiperfoco em algumas coisas. E é aí que surge o dilema: se eu apenas der presentes que reforcem o hiperfoco, não estarei ajudando e, se der algo completamente fora de seus interesses restritos, ela não vai gostar. É mais difícil.
A Gabi gosta muito de instrumentos musicais, inclusive, está se dedicando a aprender a tocar bateria. Se eu der algum instrumento diferente, pelo que conheço dela, ela vai desfocar da bateria, o que não é bom. Ela gosta muito dos Muppets, mas não encontrei nada deles à venda e que ela fosse gostar. Ela ama o Cocoricó, mas realmente a única coisa que falta do Cocoricó é eu trazer o Júlio para a ceia de natal. É difícil presentear a Gabi e ela nem é uma criança autista das mais restritivas que conheço.
É preciso incentivá-la a ser participativa na escolha do presente, mas a liberdade total dessa escolha nem sempre pode ser uma boa ideia. Há uma série de etapas para saber o que dar para a Gabriela: descobrir o que ela quer realmente, legitimar o pedido escrevendo a carta ao Papai Noel, reforçar o pedido até a noite de natal. Mas é possível, sim, fazer uma escolha certeira e, com o tempo, eu fui aprendendo como.
Se pretende que seu filho escolha um presente e escreva uma carta para o Papai Noel, você deve prepará-lo para isso. Noto que, muitas vezes, essa não é uma atividade motivadora para crianças com autismo, pois envolve muitas perguntas (e é comum autistas não gostarem de perguntas). Ir direto para “fazer a carta ao Papai Noel” dificilmente será uma boa ideia. O ideal é preparar antes a criança, explicando que a carta será escrita. Estruture esse momento.
Perguntas muito genéricas podem deixar algumas crianças estressadas. Houve uma época em que eu restringia as possibilidades de resposta, com perguntas de escolhas embutidas, como: “O Papai Noel quer saber: você quer uma bola ou um carrinho?” Para crianças que não são alfabetizadas, a utilização do desenho é uma boa ferramenta. Você também pode levar uma carta com desenhos impressos e pedir para a criança marcar um “x” no que ela quer.
Para crianças alfabetizadas, a carta ao Papai Noel é um ótimo momento para auxiliar a desenvolver um texto. Por exemplo, esse ano, na primeira carta que a Gabriela fez, deixamos o direcionamento mais livre, só pedimos que ela escrevesse o que queria que o Papai Noel trouxesse e ela escreveu “Papai Noel, quero balas e um presente de natal”. É muito fofo como ela é direta ao ponto. Mas, na segunda, aproveitei para trabalhar um pouco mais com ela. Quando questionei o que ela queria, ela disse que queria um relógio, e eu falei para ela que ela não gosta de usar relógio no pulso. Perguntei então se ela queria um de carregar, e ela disse que sim. Mas eu conheço a Gabi e sei que esse era um presente que ela ia usar durante 20 minutos, no máximo.
Então, comecei a dar ideias de presentes, perguntando se ela preferia um relógio ou uma boneca. Ela permaneceu no relógio. Depois de algumas sugestões, perguntei: “Um relógio ou uma barraca?” Ela parou, pensou e disse “uma barraca”. Perguntei de novo e ela manteve a preferência pela barraca. Então, comecei a perguntar se ela queria uma barraca ou "tal coisa": “Você quer uma barraca ou uma bola? Uma barraca ou uma bicicleta? Uma barraca ou uma LOL?”. Quando vi que ela permaneceu optando pela barraca após algumas perguntas, percebi que ela realmente tinha escolhido o presente. Sempre que pudermos, devemos dar a eles a possibilidade de escolher, mas devemos ajudá-los a desenvolver essa escolha.
Muitas pessoas com autismo não gostam de perguntas e, por isso, muitas respondem qualquer coisa, simplesmente para pararem de perguntar. É preciso reconhecer quando é uma resposta para se livrar da pergunta ou uma resposta real. Para isso, é preciso sensibilidade e paciência. Ainda temos que ter cuidado para não forçar! Se a criança está se irritando com as perguntas, melhor parar e retomar o assunto depois. Escolhido o presente, reforce todo dia o pedido para o Papai Noel, sempre dizendo o que a criança pediu e não mais perguntando o que ela quer. Isso vale para qualquer criança do mundo. Essa dica é para não correrem o risco de, no dia 24 de dezembro, terem que sair correndo atrás de um presente completamente diferente, porque você teve a brilhante ideia de perguntar “o que o Papai Noel vai trazer mesmo?”. Não cometam o meu erro de 2017.
Com o presente escolhido, voltando à cartinha, para aqueles alfabetizados, você pode dar uma demanda que leve a um pouco de superação. Na segunda carta da Gabi, eu a ajudei a escrever algo mais elaborado. Utilizei intervenções como: “Para quem é essa carta?... Ah, então você deve começar escrevendo ‘Papai Noel’”; “Você vai pedir a barraca. Não escreva só “barraca” escreva ‘Eu quero...’ ou ‘Meu pedido é...’ ou ‘Quero pedir uma...’” (sempre dou mais opções de como ela pode escrever para não ficar muito restritiva na forma de falar); “Por que não escreve que se comportou esse ano...?”. A demanda depende de cada criança e isso é algo que a gente vai sentindo até onde pode e deve ir.
O importante é auxiliar a criança a descobrir o natal e permitir que ela se expresse sobre isso. Tentar ao máximo dar a ela opções para escolher, possibilidades de demonstrar quem ela é e do que ela gosta, e auxiliá-la nesse processo. E nunca esqueça: o momento de escolha do presente pode ser um momento de você conhecer mais seu filho e os gostos que ele está apresentando no momento (afinal, todos nós renovávamos nossas preferências e interesses ao passar do tempo, sendo que certas coisas permanecem como especiais para nós, outras coisas que eram irrelevantes tornam-se especiais e algumas coisas que eram especiais tornam-se irrelevantes). Utilize esse momento do ano com sabedoria e como uma forma de se aproximar ainda mais de quem você tanto ama. Escolher um presente é momento de pensar em si e no outro, e talvez por isso seja tão mágico presentear e ser presenteado!
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