Cheguei meio correndo ao Café, pois achei que estava atrasada. Cumprimentei os donos do local (que conheço de vista) com um sorriso. Enquanto desviava de um par de casais que estava saindo, o avistei sentado numa mesa já tomando um capuccino. Cumprimentei-o com um aperto de mão e, em ver o cardápio, já solicitei bolachinhas e café preto. Fiquei feliz por ele ter deixado o lado do sofá para mim me acomodar (mais aconchegante, mais macio). Estava tudo pronto para começar nossa conversa.
Mas… Você notou? Percebeu que coisa mais incrível que eu fiz e descrevi no parágrafo anterior? E antes que você pense “Vixi! Agora a blogueira saiu da casinha de vez” deixe-me explicar melhor. A questão aqui não é que eu tenha caminhado lindamente para uma mesa de um café e feito um pedido ao garçom com uma perfeição que nunca se viu igual. O segredo para se entender a magia mora nos detalhes.
Quando eu caminhei até o café, utilizei um monte de músculos do meu corpo. Isso sem falar no equilíbrio que tive que ter para ficar de pé. Parece uma coisa normal, porque a maioria das pessoas caminha de cá para lá o dia todo. Mas você já parou para pensar o quão complexo é esse ato? O quanto ele envolve de aprendizado, de tônus muscular e do nosso corpo? Mas se fosse só o caminhar não seria tão maravilhosamente incrível. Tem mais!
Eu cheguei até o Café sozinha, o que exige uma boa dose de independência. Desviei das pessoas que estavam em meu caminho, o que exigiu que eu estivesse atenta com as características globais do ambiente em que vivo, reconhecer que havia pessoas e calcular a melhor rota para desviar delas. Depois disso, eu cumprimentei, o que exige que eu tenha conhecimento de procedimentos de adequação social e que faça contato com uma pessoa além de mim mesma.
Quando vi a pessoa que me esperava, quando notei que o sofá era macio, quando pedi bolachas porque queria algo doce, meus sentidos (visão, tato, paladar) estavam envolvidos, e meu corpo precisou ter controle sensorial da situação.
Ainda, fiz tudo isso vestida! Não que eu costume andar pela rua sem roupa… Mas você já parou para pensar que, enquanto lê esse texto, você nem está se dando conta de que tem uma roupa encostada em seu corpo? Você abstraiu essa informação para se concentrar no que está lendo, assim como eu abstraí para me concentrar em andar pelo Café. E essa abstração é algo incrível, porque sentimos a roupa tocando nosso corpo.
Como veem, muitas vezes não nos damos conta de quão complexos são os mais simples afazeres de nosso cotidiano. Para cumprir as tarefas mais básicas, muitas vezes precisamos que nosso corpo realize milhares e milhares de tarefas. Precisamos de independência, equilíbrio sensorial, interpretação dos símbolos que nos cercam, conhecimento de comunicação verbal, conhecimentos sobre comunicação corporal, etc. E tudo isso ao mesmo tempo!
É bastante comum os autistas possuírem dificuldades em algumas dessas tarefas. Por exemplo, grande parte de crianças do espectro tem disfunção sensorial (hipersensibilidade auditiva, hipersensibilidade tátil, hipersensibilidade à luz, dentre outros). A carência de percepção de comunicação não verbal (como gestos e expressões faciais) também é uma das características frequentemente presentes.
Agora, imagine-se por um segundo tentando cumprir as tarefas cotidianas enquanto está incomodado com o barulho que o cerca, enquanto não consegue abstrair que possui uma roupa constantemente tocando em seu corpo, não conseguindo interpretar expressões faciais dos que o cercam – e isso só para dizer algumas das inúmeras dificuldades que podem estar presentes do dia-a-dia de uma criança autista. Desenvolver-se se torna não uma caminhada, mas uma corrida de obstáculos.
Para conseguir derrubar esses obstáculos, ajuda profissional é essencial. Assim, para saltar cada barreira que se coloca no caminho, a criança autista conta com um tipo de terapia específica (conforme a indicação do médico assistente). Mas seria interessante ter uma terapia que trabalhasse com todas essas dificuldades que mencionei acima de forma simultânea, com o corpo em movimento pelo corpo em movimento e com o corpo em movimento como ferramenta de contato com o mundo que o cerca. E se eu falar que essa terapia existe?!
Não… Não é uma terapia que substitui as outras, mas sim aquela que vem contribuir trabalhando com todos os pontos colocados aqui de forma simultânea. O nome dessa terapia é psicomotricidade. Segundo a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade, a “psicomotricidade é a ciência que tem como objetivo o estudo do homem através do seu corpo em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo, bem como suas possibilidades de perceber, atuar, agir com o outro, com objetos e consigo mesmo”.
Em outras palavras, a psicomotricidade vai trabalhar com o ser humano utilizando o movimento do corpo como ferramenta de abordagem para se chegar a questões do mundo interior e exterior do autista. Agora imagina trabalhar tudo isso NA ÁGUA! Sim, na água!
E aí voltamos ao ponto de partida desse meu texto: a ida a um Café para uma conversa. A pessoa que me esperava com um cappuccino se chama Anselmo Franco da Silva, professor de educação física, especialista em psicomotricidade geral, relacional e aquática, bem como em educação especial (com experiência de nove anos com autistas), atuante na clínica Corpo e Atitude e como personal de natação adaptada. É ele que gentilmente me recebeu para tirar as minhas dúvidas e curiosidades sobre o tema.
Inicialmente eu achava que psicomotricidade aquática era uma hidroterapia que também ajudava na parte psíquica (não havia achado muita informação sobre essa terapia quando pesquisei). Mas vai muito além. Anselmo me explicou que o trabalho busca uma melhoria na comunicação e na interação social, bem como conferir independência no ambiente aquático e melhoramento na parte motora. Outrossim, o trabalho também busca auxiliar na busca de um melhor equilíbrio sensorial.
A terapia geralmente é feita com o paciente e o profissional em uma piscina térmica. O primeiro ponto a ser levado em consideração é o contato com a água. Dessensibilizar crianças que têm dificuldade com o contato com a água já é um dos adventos que pode ser obtido pela terapia. Para aqueles que, por disfunção sensorial, a hora do banho é uma tortura ou que não suportam a água caindo em seu rosto, a psicomotricidade aquática pode ajudar e muito.
Uma vez na água, inicialmente é comum que a criança com pouca independência nesse ambiente tenha que usar o corpo do profissional como meio para obter os seus desejos, e isso, por si só, já desenvolve questões como relação social, contato e confiança. Por exemplo, se a criança quer um pato de borracha que está do outro lado da piscina, necessitará que o psicomotricista aquático a leve até lá (porque obviamente ela não vai sair nadando sozinha nos primeiros momentos) e isso desenvolve a questão do “eu” do “outro”, que é uma dificuldade para autistas.
Ainda, a água é um recurso simbólico importante e é um “objeto” interessante para ser trabalhado, principalmente pela sua indestrutibilidade. A ideia é, pela água, estimular “o indivíduo de forma que, por meio deste movimento, ele aprenda a se conhecer e se aceitar, ajustando seu comportamento e atitudes ao meio social, de forma lúdica e prazerosa, numa proposta de movimentos criativos, espontâneos, livres e com significado para o indivíduo.”. (BUENO, 1998, citado por Anselmo).
A parte motora também é trabalhada. Dificuldades de movimento e tônus muscular são questões que são levadas em consideração. Além disso, a própria independência no ambiente aquático é outra questão que se aborda nessa terapia (não podemos esquecer que um dos maiores índices de acidentes com crianças é afogamento). E, ressalte-se, que essa independência na água causa prazer e, aos poucos, é comum a criança começa a generalizar essa independência em outros ambientes (a criança começa a ter vontade de fazer as coisas por ela mesma; escovar os dentes, pentear o cabelo, etc.).
É bastante coisa, não é?! E olha que isso é só uma seleção de pontos que considerei mais interessantes e importantes.
Mas fica a dúvida: Como o psicomotricista vai realizar esse trabalho? Bom, a primeira coisa é ter muita calma, paciência e carinho. Observando Anselmo trabalhando ou mesmo quando estava conversando comigo, nota-se que, além desses fatores, é preciso que a pessoa incorpore um olhar diferenciado e mais atento com o mundo, com as pessoas e o com meio que a cerca – afinal é o psicomotricista que deve decodificar as expressões do corpo do outro, enquanto disponibiliza o seu em uma postura acolhedora, durante a sessão terapêutica.
É tão lindo ver nossos anjinhos azuis se tornando peixinhos azuis! Então converse com o médico do seu filho sobre o tema e tire suas dúvidas.
E se o assunto é água, meus desejos que todas as dificuldades e incertezas sejam levadas por esse rio – por vezes calmo, por outras tão agitado – que é a vida.