E ela disse: “Eu não sei como você pode amar tanto o autismo, pois eu tenho raiva do autismo porque ele prejudica meu filho”. Tinha lágrimas nos olhos e um tom incontestavelmente sincero na voz. Eu confesso não saber o que veio depois. Embora ela continuasse falando, eu desliguei, e me imergi em meus pensamentos. Olhava fixamente para ela, mas era como se minha visão tivesse desligado. Já estava no meu mundo pensante, enquanto fingia escutar atentamente o que ela falava. Às vezes faço isso. Não é proposital ou controlável. Simplesmente vou embora em meus pensamentos.
Eu realmente amo o autismo? É possível amar o autismo? Todo meu trabalho envolve autismo, minha militância é em torno de uma sociedade inclusiva, eu amo minha filha autista exatamente como ela é. Mas não acho que isso signifique que eu ame o autismo. Acho que é impossível a uma mãe amar o autismo. Porque minha filha tem autismo, ela tem que fazer um trilhão de horas de terapias, tem dificuldades de fala, está com aspectos de desenvolvimento infantil atrasado. Eu não queria isso para ela. Queria que ela tivesse tudo com facilidade, que a vida fosse linda, em um clima de filme da Disney na cena final do felizes para sempre.
Certamente em minha vida foram os momentos difíceis que mais me ensinaram, mas eu queria que minha filha aprendesse apenas por amor, e nunca pela dor ou pela dificuldade. Embora eu saiba que é impossível uma vida sem problemas, acho que o que todo pai e mãe queriam é que seu filho nunca sofresse realmente. Há um certo egoísmo nesse amor materno, porque sei que às vezes é bom sofrer, mas é horrível pensar em um filho triste ou passando por dificuldades.
Não vejo o autismo como limitador, mas é obvio que o autismo impõe barreiras a serem transpostas, obstáculos a serem superados. E eu me sinto impotente diante desses obstáculos, porque eu não posso simplesmente tirá-los do caminho da minha filha, derrubá-los. O obstáculo está lá, minha pequena está diante dele, confusa, e o máximo que eu posso fazer é ficar ao seu lado, como uma treinadora esportiva, explicando como passar o obstáculo. E o pior é passar esse obstáculo para encontrar o próximo logo ali adiante.
Talvez essa seja a metáfora que mais se encaixa em como eu vejo a vida: uma pista de obstáculos. A criança sem autismo de vez em quando se coloca diante de um obstáculo, e lá está seu pai ou mãe treinadores ao lado para orientá-la sobre como saltar. Agora, crianças com transtornos globais de desenvolvimento, como o autismo, estão constantemente frente a obstáculos. E o que dói a nós, pais, como treinadores, é vê-las saltando o obstáculo de agora, enquanto já conseguimos enxergar outro pouco à frente (mesmo que os pequenos não enxerguem).
Como gostar do autismo, se é ele que coloca obstáculos na vida de minha filha? Por outro lado, o autismo faz parte da forma da Gabriela ser o que é. O autismo não traz apenas sintomas, mas também outra forma de ver o mundo. E essa forma tão inocente e clara de enxergar o outro é linda e faz parte do que a Gabriela é. Dessa forma, o autismo é o maior desafio, mas também é parte de como a Gabriela pensa.
Não tem como amar o autismo, mas é impossível não amar o autista. E o autista é quem ele é também por ser autista, então, por mais que tratemos os sintomas, por mais que a Gabriela chegue a um nível de desenvolvimento muito similar ao típico, por mais que eu lute contra o autismo, ele sempre vai estar lá, nas entranhas, compondo como ela pensa e, assim, sendo parte do que ela é. Nenhum autista se resume ao autismo, mas ao mesmo tempo nenhum autista é ele mesmo se tirarmos o autismo, pois é justamente ele que influencia muito na forma como essa pessoa vê o mundo.
Na frente de cada obstáculo, me comportei diante de Gabriela como se fosse uma gincana divertida, afinal, “La vita è bela”. Isso às vezes causa dor, mas às vezes causa conforto em mim, como mãe. Apesar de todas as dificuldades que o autismo pode trazer, ver o salto, o transpor e o superar de cada obstáculo é a coisa mais linda que se pode presenciar. Quando a vejo transpor uma dificuldade, percebo que ainda é possível acreditar no ser humano, na força, na pureza, na fé (em algo ou em nós mesmos).
É comum as pessoas sentirem pena de pais de crianças com autismo, como se fossem um fardo a carregar. Eu mesma lançava olhos de compaixão a pais de crianças com deficiência antes de ser mãe. Hoje não olho para mim nem para os outros pais de crianças com autismo (down, paralisia cerebral, etc.) com olhos de piedade ou vitimização. Também não penso que tenho sorte por ter o autismo em minha vida. O fato é que, por minha filha ser autista, eu enfrento dificuldades próprias, mas também possuo recompensas que não existiriam se ela não tivesse autismo.
Gabriela não seria quem ela é se não fosse autista, e eu não seria quem sou se tudo fosse diferente. O autismo dela me mudou, virou e revirou meu mundo e paradigmas. Minha ordem de importância das coisas se alterou. O passo do compasso do tempo se fez reflexo, repleto e reflexivo. O autismo de minha filha não é prêmio ou perdição, mas sim composição do que tinha que ser, porque não vejo como poderia ser diferente.
E aí está, “Gabriela e seus camaradas”: Mathias, Betinas, Pedros, Jorges, Matheus, Lucas, Bernardos, Rafaels… Todos aqueles que são como Gabriela; são o que são por serem autistas, e não poderiam ser diferentes. Se diferentes fossem, haveria uma lacuna no mundo, uma falta de ordem, porque precisamos deles para entender um novo sentido de amar e de nós mesmos. Como diz a música “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim, sempre Gabriela. Quem me batizou quem me nomeou, pouco me importou… Sempre Gabriela”.
Minha relação com o autismo foi mudando, ao longo do tempo. Descobri, aos poucos, uma forma de viver em que pelo autismo nada se sente (apenas se enfrenta), enquanto, por outro, reconhece-se que é impossível não amar o autista.