por S.P| Foto:

Débora, no auge dos seus dois anos, corre atrás da irmã o tempo todo. “Gabriela, Gabriela, Gabi, Bibi, ‘Imãzinha’”. Gabi canta uma música, ela dança. Gabriela bota a mão na boca, Débora dispara “’tila’ a mão da boca, Gabi!”. Gabriela entra na terapia, Débora cumprimenta o terapeuta. Na hora de comer, Débora é o narrador particular: “Gabi comeu ‘blócolis’”, “a Gabi ‘delubou’ ‘macaão’”. E tudo parecia tão fofo, até que chegou o dia que eu temia: “’Blinca’ comigo, Gabi!”.

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E lá ia Débora atrás: “’Blinca’ comigo, ‘blinca’ comigo”. E meu coração se partiu. O que fazer? Como explicar para uma criança de dois anos que a Gabi tem dificuldade de brincar com outras crianças? E como explicar para a Gabi que, para a Débora, é inato brincar com outras crianças? É uma situação difícil, delicada. E é como se meu coração doesse por inteiro: dói metade pela Débora, que só quer o carinho da irmã, dói pela Gabi que não sabe expressar que não quer aquele contato.

Nesse compasso descompassado das batidas de nossos corações, nesses segundos tão eternos, eu paralisava. Tentava fingir que estava tudo bem, mas não estava. Mantinha a pose de “estou no controle”, mas, por dentro, estava tudo revirado, remexido e confuso. Quando se trata de minhas meninas versus o mundo é fácil agir, mas e quando é uma versus a outra? Eu posso sentar e explicar o que é autismo para adultos, mas como vou explicar o que é autismo para crianças de dois anos? Meu coração apertava, minha respiração parava, e eu me dava conta que as crianças ao redor da Gabriela, assim como a Débora, podiam não entender direito a maneira de ser de um autista.

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Os dias se seguiram, e certa vez a Gabi foi brincar em uma cama elástica. Uma menininha dizia para ela: “Para de pular e me dá a mão”. A Gabi não parava de pular, nem dava a mão. A pequena criança, de quatro anos, desceu e disse para mim “tia, ela não quer me dar a mão” fazendo biquinho. Eu fiquei me sentindo numa sabatina, mas prendi o fôlego, ajoelhei na frente da criança e comecei a falar: “Sabe, meu anjo… Todo mundo é diferente. A Gabizinha tem uma diferença grande. Ela está aprendendo a falar agora e ela não sabe brincar com os amiguinhos. Daí a gente tem que ensiná-la a brincar. Se você quiser, pode me ajudar a ensinar”. Pronto, a menina se sentiu incumbida de uma tarefa! No final do passeio, eu estava quase oferecendo uma remuneração mensal para a menina vir brincar com a Gabriela na minha casa!

Nesse dia eu tive um insight: é mais difícil descrever autismo para um adulto que para uma criança, pois as crianças não estão fechadas ao que é diferente. Basta a gente explicar como lidar, que a criança faz acontecer. Crianças são mais abertas que nós, têm menos medo que nós e, infelizmente, têm mais amor que nós, adultos, ditos maduros. Elas não pensam em como vai ser o futuro, se os sintomas vão passar. Elas lidam da melhor forma com o que está na frente delas. Aceitam prontamente as diferenças, lidam com elas e aprendem a amar. Será que foi bom crescer? Será que não seria mais belo ser para sempre inocente, puro e aberto às novidades, como uma criança?

Em outra ocasião, uma criança que brincava no parquinho de meu prédio veio me questionar: “A Gabi não fala?”, ao que eu expliquei que falava, mas que era mais difícil ela falar com crianças que ela não conhecia e que ela ainda falava meio enrolado. A menina disse “É… Ela parece que fala que nem E.T. Não é, tia?”. Fiquei em silêncio por um minuto e depois acabei rindo. Ela falava tão sem maldade. Eu disse que a Gabi era autista, e expliquei em palavras simples o que isso significava; disse que somos todos diferentes; que ser autista traz dificuldades, mas também traz coisas boas. A criança lançou: “meu pai deve ser isso aí de autista”. Acabada a estranha conversa, ela quis levar a Gabi para pegar um balde de água. E lá foram as duas de mão dadas, pegar o baldinho de água para brincar com areia molhada.

No colégio, a Gabriela é acolhida por seus colegas. Tem uma amiguinha em especial que a Gabi adora. Essa amiguinha ajuda a Gabi em tudo. Ela tem um amor pela Gabi que me emociona. E a Gabi, à sua forma, corresponde.

Quanto à Débora, hoje as coisas estão melhores dentro do meu peito, porque há uma magia no amor entre crianças. Comecei muito singelamente a demonstrar para a Dé que a Gabi é diferente e – por que não? – mostrar para a Gabi que a Débora é diferente. Aos poucos, elas vão achando o meio termo da relação. Ainda precisam de minha presença como mediadora, mas estão juntas encontrando o ponto ideal de como conviver e viver. Tão mais sábias que eu, elas se encaram com a certeza que tudo vai se ajeitar e se entendem de forma tão clara. Entre elas não há nomenclaturas: autismo, autista, neurotípico, atípico, normal, deficiente… Nada disso faz sentido para as crianças. A única coisa que importa para elas é se descobrirem em semelhanças e diferenças e se adaptarem para mutualmente exercerem sua afetividade, cada qual à sua forma.

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Nós, adultos, é que criamos o preconceito, calcado em nossa visão torpe de um mundo do que é aceito e do que não é, o que é bom o que é mau, o que é feio e o que é bonito. Nenhuma criança exclui a outra se não for assim ensinada. Assim, quando algum sintoma da Gabriela aparece de forma forte, visível, e me dói o peito por medo do que é e do que será, eu olho para os olhos tranquilos da Débora. Aquele olhar de criança de dois anos, que, complacentes, acolhem as maiores diferenças como normal de vida em se ter uma novidade. Aquele olhar que vê a diferença simplesmente e apenas como diferença, sem saber ao certo o que diferente significa. Aquele olhar que diz que “é porque é”.

Aprendi a me encontrar com um “eu” de 26 anos atrás. Aí eu consigo ver que na inocência está a pureza de ver a diferença como normal, ou mesmo em sequer compreender o conceito de diferente. Encarar tudo como novidade é encarar tudo como diferente, onde se deparar com a diferença é a arte normal de descobrir o mundo. Nesses momentos, o sintoma que se apresentou no comportamento da Gabi às vezes persiste, mas a dor no meu peito vai embora ao ver esse sintoma passar, me deixando livre para agir como tenho que agir, sem me preocupar com meus sentimentos, apenas me integrando e entregando de forma leve ao ato de ser mãe.