Na correria insana de um dia não mais que normal, parei para tomar um café na esperança de que, em uma xícara, eu encontrasse poderes mágicos que levassem meu cansaço e meu sono embora. Apoiei-me no balcão da cafeteria para degustar meu pedido, fitando o nada por alguns minutos, efeito de uma grande preguiça de pegar o sachê de açúcar, abri-lo e despejá-lo. E esses meros instantes foram suficientes para dar azo a um péssimo hábito meu, que venho desenvolvendo ao longo dos anos sem orgulho: escutar conversa alheia.
Atrás de mim, dois homens reclamavam da crise no Brasil, da corrupção que se revela, da cotação do dólar, dos poderes Executivos e Legislativos. Dos imigrantes que morrem nos mares, no desastre ambiental de Mariana. Do desemprego e da pobreza. Da dor de tantos que se faz sobre o sucesso de poucos. E então um deles conclui: “Não há mais como ter fé no ser humano!”. O seu parceiro de conversa concorda.
Confesso que colocar em xeque a fé na bondade alheia foi algo bastante recorrente em minha trajetória. Todavia, esse sentimento surgiu de uma maneira muito peculiar. Nenhuma das desgraças anunciadas no jornal foi forte o suficiente para extinguir minha esperança na humanidade, entretanto, depois do diagnóstico de minha filha, vivenciar a maneira que as pessoas enxergam e tratam crianças autistas realmente fez com que eu repensasse no homem como um ser naturalmente bom.
Moramos num país em que – embora a saúde seja considerada direito fundamental – crianças autistas em geral esperam meses e meses para conseguirem o diagnóstico por atendimento com um neurologista fornecido pelo Estado e, portanto, perdem precioso tempo de tratamento. Todos esses meses de espera poderiam ser usados para atendimento da criança. Mas, não! É tempo perdido em que os pais vivem infinda agonia e a criança fica sem os cuidados de saúde adequados.
A realidade é que, se seu filho apresenta sintomas de autismo, para saber se ele de fato é autista, em regra, ou você vai ter de pagar por um atendimento célere ou terá de esperar meses por um atendimento pelo SUS. É de se notar que crianças pagam com o seu futuro pelo simples fatos de os pais não poderem custear médico particular e plano de saúde, – e isso é tão imensamente cruel em se tratando de serezinhos que apenas começaram a viver.
Conseguir um médico é difícil, mas nem se compara à dificuldade de alcançar os tratamentos necessários. Quantos e quantos autistas poderiam estar falando, se comunicando, fazendo laços de amizade e se tornando cidadãos participativos se tivessem recebido tratamento a tempo? Quantos pais sofrem a agonia de esperar por um atendimento de qualidade para seu filho enquanto veem as esperanças de um futuro melhor definhar?
E se o Sistema Único de Saúde não atende às expectativas, a realidade apresentada pelos planos de saúde não é das mais agradáveis. Isso porque planos têm negado indevidamente o acesso de crianças a tratamentos médicos consubstanciando suas negativas em cláusulas abusivas do contrato. Os pais têm de recorrer à Justiça para ter acesso ao direito de seus filhos ao tratamento, o que é um desgaste desnecessário criado por uma sociedade que baseia sua lógica no lucro a todo custo (afinal, mais barato negar tratamento baseado em cláusulas abusivas, uma vez que nem todos os pais de crianças autistas sabem de seus direitos e procurarão a Justiça).
Ainda devemos notar que atender o Direito a Saúde é também promover a informação. Mas quantas pessoas que você conhece que realmente conhecem sobre autismo? Chega a ser chato o número de vezes que pais de autistas escutam pessoas dizerem que a criança não pode ser autista porque ela é agitada (e daí a famosa frase de pais de autistas na internet: é porque é autista e não uma estátua). Onde estão as medidas proativas do Estado no sentido de informar à sociedade o que é o autismo e como é seu tratamento?
Acesso à saúde não é a única batalha para pais de crianças autistas, pois muitos colégios empregam um verdadeiro sistema de exclusão. Ao tentar matricular o seu filho em colégio particular, muitos pais se deparam com a afirmação de que a escola não pode receber alunos autistas. A conduta, além de ser criminosa (no sentido literal do termo, inclusive), causa uma sensação horrível para quem ama a criança. Afinal: por que o mundo não consegue perceber o quão incrível esse criança é e o quanto é fácil amá-la?
Talvez, pior do que negar vaga de colégio para autista de imediato seja o que alguns colégios fazem para excluir: Disponibilizam a vaga e, depois de ter conhecimento de que a criança é autista, arranjam uma desculpa e dizem que infelizmente aquela vaga não existe mais, numa tentativa de não configurar exclusão penal e civilmente punível. E como provar que eles têm vagas? Como provar o preconceito velado?
Sempre dou a dica de tentar conseguir algum comprovante de que há a vaga, antes de informar ao colégio que a criança é autista. Mas é claro que mesmo essa opção não é o melhor caminho. É pungente a necessidade de uma sociedade que acolha o autista dentro dos colégios, uma vez que a única maneira da escola preparar para a sociedade é promovendo a diversidade em sala de aula, já que o mundo fora dos muros da escola não é povoado apenas por pessoas de desenvolvimento típico.
Isso sem falar em tutoria escolar! Em se falando de educação pública, o Estado possui número menor de tutores do que de pessoas que necessitam de acompanhamento em sala de aula. Já os colégios particulares tentam passar constantemente o custo da tutoria para os pais, contrariando previsão legal.
Tais situações indignam e frustram e seria bom encontrar no povo brasileiro a vontade de lutar para mudar essa situação. Só que o problema é que quase ninguém sabe dessas tamanhas dificuldades que envolvem conseguir uma condição minimamente digna de tratamento e ensino para crianças autistas. E diga-se mais, além de não encontrar no ombro alheio um conforto, pais de autistas são constantemente recriminados e constrangidos pelas pessoas que os cercam.
É comum a cena de uma criança autista ter um acesso de raiva em público, e todos ao redor julgarem e criticarem os pais pela “má educação da criança”, todavia sem demonstrar compaixão pelo real motivo daquele fato. Muitas mães relatam que pais de outras crianças proibiram seus filhos de brincar com uma criança autista simplesmente pelo fato de ela ser diferente.
As tristes notícias no jornal parecem menos distantes quando estamos acostumados a lidar com a maldade humana todos os dias. As desgraças do mundo não parecem menores, mas sim mais reais. É como se, ao experimentar uma centelha do lado cruel do Homem e sofrer com isso, desse para entender sofrimentos muito maiores, e as notícias no jornal não são apenas imagens distantes, mas uma realidade de existência da maldade generalizada.
Assim, para muitas mães e pais de crianças autistas, a descrença na bondade humana muitas vezes se inicia com o seguinte questionamento: Diante de tantas portas fechadas na cara, de tantos olhares preconceituosos, de uma sociedade onde o dinheiro está acima da saúde e da educação, como acreditar no ser humano?
Mas, mesmo assim, não podemos parar de acreditar. Não foi sem lutar e sem sofrer que consegui que minha filha fizesse todos os tratamentos necessários e estivesse em uma escola que a acolhesse com todo carinho e amor. E no caminho dessa luta conheci pessoas maravilhosas dispostas a buscar por um mundo melhor, sem acreditar que isso fosse apenas um sonho. Também foi nesse caminho que descobri o melhor de mim.
Seja pelas desgraças que hoje acontecem em nosso Brasil e no mundo, seja por nossas experiências pessoais… Apesar de existirem muitos motivos para desacreditarmos na bondade humana, o simples fato de olhar para nossos filhos é revelador de que ainda existe algo de bom em nossa sociedade: eles!
Talvez a inocência e a sinceridade avassaladoras dos autistas seja justamente o que precisamos nesses tempos sombrios. Talvez o olhar distante da criança autista seja a busca de uma luz em tanta escuridão, talvez seja uma fuga da maldade de nosso tempo. Talvez, mais do que nunca, precisemos de autistas em nossas sociedades, para nos ensinarem um caminho melhor (e quem convive com uma criança autista consegue entender o que estou dizendo).
Nesse Natal, aos pais e mães de crianças autistas, meu desejo que vocês presenteiem a si mesmos com força. Aquele tipo de força que a gente não sabe de onde tira. Força suficiente para lutar por um mundo melhor para nossos filhos.
Nesse Natal, aos pais e mães de crianças com qualquer deficiência, meu desejo que vocês presenteiem a si mesmos com certeza de que tudo vai dar certo, e que nossos filhos terão muitas e muitas evoluções e viverão em um mundo mais inclusivo.
Neste Natal, a todos os pais e mães e aqueles que não o são, meu desejo de mais tolerância, mais empatia. Que sejamos todos tomados pela capacidade de nos emocionar e apreciar o diferente, afinal todos somos diferentes de alguma forma.
Os presentes que desejo são daquele tipo que só nós podemos dar a nós mesmos, e daquele tipo que ninguém pode tirar de nós. Creio que sejam os mais valiosos, pois têm a capacidade de modificar nossa própria história e daqueles que nos cercam. A todos, desejo que todo dia seja um Feliz Natal.
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