Morrendo de dor, gemendo e suando, chegava eu ao hospital. Na hora do atendimento um impulso: pego nos dois ombros do médico e repito, pausada e seriamente: “Me escute! Seja lá o que for que eu tenho, eu não posso morrer. Você consegue entender isso? Eu tenho uma filha autista, logo, eu não posso morrer. Definitivamente morrer não é uma opção hoje. Entendeu! Se eu morrer, vou ferrar com tudo!”. Bom, o médico levou um baita susto. Confesso que fiquei envergonhada depois que tive consciência que o tal “risco de vida” que eu achava era só uma pequena pedra no rim (Não me julguem! Dói para diabos!). Tal cena, meio tragicômica, que aconteceu comigo, revela uma realidade: o profundo medo de morrer de pais ou mães de crianças autistas.
Não deixa de ser verdade que o medo de morrer para qualquer ser humano no mundo é algo normal. Não é à toa que o medo da morte é o ponto central do, possivelmente, mais célebre trecho da literatura mundial, qual seja o ato III, cena I de Hamlet (William Shakespeare). Nesse momento da peça, o príncipe de cabeleira branca se questiona: “ser ou não ser, eis a questão”. Nesse questionamento, o príncipe Hamlet conclui que justamente por desconhecermos o que vem depois da morte é que nos sujeitamos às dores da vida. Afinal, por que alguém viveria sujeito a sofrimentos se soubesse que depois da morte teria apenas alegria ou descanso? Nesse sentido, Hamlet se questiona se é mais dolorido ou nobre sofrer vivendo ou pôr um fim à própria vida.
“Morrer, dormir… Dormir! Porventura sonhar: sim, eis o problema, já que nesse sono mortal os sonhos que possam sobrevir, quando já livres deste turbilhão da existência, devem fazer-nos hesitar: eis o respeito que dá vida tão longa à calamidade, pois quem suportaria o açoite e o escárnio do tempo, o agravo do opressor, a arrogância do orgulhoso, as chagas do amor desprezado, a tardeza da Lei, a insolência da autoridade e o desdém que têm pelo mérito paciente os indignos, quando ele próprio poderia seu quietus engendrar, com um simples punhal?” (ato III, cena 1, Hamlet, por W. Shakespeare)
E porque somos demasiadamente humanos, as incertezas do que vem depois da morte nos fazem temer. Nesse sentido, a fé em Deus (seja por meio de qual religião for) e na crença que a alma existe e é eterna pode nos dar certa tranquilidade em lidar com a fragilidade de nossa condição frágil e carnal. O problema é que existe algo além do medo da morte motivado pelo medo do que vem após esta. Trata-se de uma segunda faceta do medo de morrer, que apenas conhecemos quando nos tornamos mães e pais.
Toda mãe e todo pai, após se deparar com as fragilidades inerentes a qualquer criança, passa a ter o temor de morrer. O que será de meu filho sem mim? Meu filho não merece viver sem mãe/pai! Meu filho sofreria muito se eu morresse? Assim, por nossos filhos, passamos a ter medo da morte. Essa característica nos torna mais centrados, menos impulsivos e mais cuidadosos. Trata-se de um sentimento comum a pais e mães por todo o mundo.
Só que a maneira como esse medo se manifesta para uma mãe de uma criança autista e para uma mãe de uma criança não autista é muito diferente. Consigo notar a diferença ao pensar no tema olhando para minhas duas filhas: Gabriela, que está no espectro, e Débora, que é neurotípica.
Veja, olhando a Débora, minha filha que não tem autismo, eu tenho muito medo de morrer. Afinal, a Débora é tão frágil, pequena, apegada. Ainda é um cisco de gente que precisa e merece minha proteção. Mas, ao mesmo tempo, quando olho a Débora, tudo indica que ela um dia será independente. Embora o futuro seja incerto, a capacidade de Débora de ser independente é a chance mais provável, e o contrário seria acaso de um fortuito, improvável, inesperado. Ou seja, eu visualizo a dependência da Débora hoje, mas já consigo ver sua independência num futuro, quando ela for adulta.
Já olhando para Gabriela, que é autista, eu não sei se ela será uma adulta completamente independente. Eu realmente espero que sim, mas não tenho essa certeza. E aí está a diferença: pais de crianças não autistas têm medo de morrer e deixar seu filho dependente sozinho, já pais de crianças autistas se veem na necessidade de serem eternos. Não temos apenas medo de morrer agora, mas medo que nossa mortalidade faça com que nossos filhos fiquem desassistidos.
Em geral, em textos do blog, eu tento apresentar um problema comum e apresentar uma solução ou a forma como eu consegui lidar com a questão. Mas, dessa vez, fica impossível. A única coisa que faria esse medo passar seria uma poção da imortalidade ou a certeza que nossos filhos virão a ser independentes, e nenhuma dessas coisas eu posso dar (e como eu queria poder oferecer isso a mim e a vocês).
Embora, eu não tenha a solução definitiva para esse medo, ao menos eu encontrei uma forma de abrandá-lo em meu coração. Isso aconteceu a partir do momento em que desenvolvi estratégias para como seria a vida de Gabriela se eu morresse. Esse processo foi dolorido, pois eu tive que imaginar como seria minha morte durante a infância dependente e durante uma vida adulta dependente. Ou seja, tive que imaginar os piores cenários, para conseguir traçar planos para que minha pequena nunca fique desassistida. Também foi dolorido porque tive que falar claramente com as pessoas sobre o que deve ser feito caso eu morra (definitivamente não é a conversa mais divertida).
Claro que nenhum desses planos é perfeito, mas ao menos eles dão uma sensação de segurança. É evidente que se trata de um falso controle sobre tudo até mesmo depois de não estarmos mais aqui. Mas para mim, pelo menos, foi válido, pois me senti mais segura que, na minha ausência, Gabriela terá um amparo que eu mesma preparei para ela.
Quando amamos, naturalmente abrimos mão de tantos alvedrios pelo bem de quem amamos. Mas não podemos nos perder em nós mesmos a ponto de esquecer que sempre teremos a liberdade e a imposição de sermos apenas seres humanos. Não há perfeição ou eternidade no que é feito de carne. A parte mais difícil de ser mãe ou pai de um filho autista é lidar com nossas limitações e mortalidade, encarando constantemente nossa humanidade, enquanto tudo que queríamos é ser algo perto de ser tudo, simplesmente para atender e servir àquele infinito que singelamente chamamos de “meu filho”.
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