O silêncio da madrugada sempre agradou meus ouvidos. É quando todos da casa dormem em quietude que me ponho de frente comigo mesma, me escuto e escrevo. Hoje, porém, eu não conseguia passar nenhuma palavra para o papel, pois uma frase que escutei de um amigo ficava martelando em minha mente e atrapalhando o fluxo livre de meus pensamentos: “Mães de crianças autistas são exemplos de guerreiras!”.
Bom… Essa frase era para ter sido um elogio, mas de alguma forma me incomodava e causava um desconforto quase tangível. Nós, pais e mães de autistas, somos guerreiros? E se somos, por quê? Diante desses questionamentos que me perturbavam, fechei meu notebook, resignada de que não era um bom dia para escrever nada. Tentei dormir… Nenhum sucesso. Sem opção, propus-me a desvendar o mistério que me afligia.
Aos poucos percebi que a primeira coisa que me incomodava na afirmação de meu amigo era que, quando ele falava “mães de autistas”, me colocava em um grupo distante do que ele vivia. De alguma forma, nas entrelinhas de uma frase elogiosa havia uma segregação entre “nós, do mundo da tipicidade” e “vocês, do mundo da atipicidade”. Era como se estivessem me dizendo que eu havia perdido meus grupos sociais de origem simplesmente por ser mãe de uma criança autista, embora, meu amigo nunca tivesse realmente a intenção de me dizer isso racionalmente.
E, por mais que seja dolorido, preciso reconhecer que essa segregação entre “pessoas com vida normal” e “pais e mães de crianças autistas” mexia comigo porque, de certa forma, ela é um pouco real. Desde o diagnóstico de minha filha, minhas prioridades de vida mudaram, assim como minha forma de ver o mundo, e eu me sentia mais próxima de mães e pais de crianças com TEA do que do resto da humanidade. Meus papos, minhas preocupações, meus medos… Tudo isso me aproximava de pessoas que, como eu, lidavam com o autismo no seu dia a dia.
Só que me reconhecer em outros pais de autistas e sentir que fazemos parte de um mesmo grupo de pessoas não anula o fato de que pertencemos a uma sociedade que é um todo único. Enquanto as pessoas olharem para pais de crianças autistas como “eles”, estarão olhando para o autismo como algo externo à sociedade, e a exclusão será inevitável. A ausência de normalidade ao se falar do autismo traz uma sensação de não pertencimento aos familiares de crianças autistas e, creio, até aos próprios autistas. Assim, mesmo quando em forma de elogio, a colocação de pais de crianças autistas como um grupo que se distancia daqueles com vida dita normal não é algo positivo.
O outro ponto que me incomodava era essa classificação de “guerreiros”. Não era a primeira vez que escutava o termo como um elogio, e não era a primeira vez que a colocação não me agradava. Não que eu não ache que os pais e mães de crianças autistas são guerreiros, muito pelo contrário. Mas acho que o fato de ser guerreiro não é por causa do autismo, afinal a maioria dos pais que converso amam seus filhos e são felizes ao lado deles, com ou sem autismo. Então quando alguém fala que sou guerreira por ser mãe de uma criança autista soa para mim como se a pessoa estivesse me dizendo que eu sou guerreira por ser mãe de minha filha – e ser mãe da Gabi só me traz alegria.
O trajeto para as terapias, as dificuldades do dia a dia, as preocupações… Isso nós não enfrentamos porque somos guerreiros, mas sim porque amamos nossos pequenos (tenham eles 3, 13, 23, ou 33 anos), e quem ama enfrenta tudo por amor, e com amor. Talvez nesse mundo de hoje, de tanto desamor, os amores manifestos (como o de pais e mães de autistas pelos seus filhos) sejam interpretados como sinônimo de coragem – coragem própria de guerreiros.
Aos meus olhos, pais e mães de crianças autistas se manifestam como guerreiros não por causa de seus filhos (pois eles são a parte boa), mas diante de uma sociedade pouco inclusiva, que sabe tão pouco sobre cuidados de crianças com necessidades especiais. Somos guerreiros quando temos que escutar que nossos filhos não são autistas porque autista não é agitado; somos guerreiros quando, durante um ataque de raiva em local público, as pessoas nos condenam como maus pais que criaram uma criança mal-educada; somos guerreiros porque muitas vezes temos que pleitear juridicamente direitos que são de nossos pequenos; somos guerreiros porque, enquanto o mundo inteiro acha que vamos cair, nos mantemos de pé.
Só que já disse o poeta “Guerreiros são pessoas, são fortes, são frágeis”. Taxar pais e mães de autistas como guerreiros também exime as pessoas que os cercam de aceitar nossas fragilidades. E nós temos! Às vezes só queremos um chá, um cafuné e ver a novela; dormir até mais tarde; não falar de autismo ou só falar disso. Que alguém nos dê um prognóstico exato sobre nossos pequenos (embora isso não exista)?! Talvez precisemos chorar às vezes, e acredite, temos o direito.
Eu nunca quis ser um exemplo de que vale a pena lutar pela felicidade de minha filha. Meu plano inicial era que essa felicidade viesse naturalmente, e que a sociedade recebesse minha pequena sempre de braços abertos, sem motivos para preconceitos. Eu não pedi para ser um exemplo para as outras pessoas de que o amor de mãe não está ligado com a dita normalidade. Sou simplesmente e apenas uma mulher que ama sua filha (e como não amar essa coisinha linda?). Eu não pedi nem tentei ser uma guerreira, talvez por isso esse elogio não me comova como deveria. Imagino que muitos e muitos pais e mães se sintam como eu.
Então, peço humildemente para você, que não é pai ou mãe de uma criança autista, que aceite alguns conselhos: ao invés de olhar para nós como guerreiros, olhe para nossos filhos simplesmente como crianças e não como autistas; ensine a seu filho que o diferente é normal; se indigne quando a sociedade não for inclusiva; não julgue os comportamentos de crianças sem saber a cerne deles; respeite os direitos de crianças autistas; transcenda sua visão de normalidade porque, afinal, de perto ninguém é normal. No dia em que cada pessoa entender que o diferente é essencial não seremos mais “pais de autistas” e “pais guerreiros”, mas simplesmente “pais”.
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