por S.P| Foto:
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Pensando bem, dia 1º de janeiro é um dia como outro qualquer. Não é diferente de 1º de fevereiro ou 1º de março. Apenas mais um dia, em um continuado de instantes efêmeros que dizemos por ser “nossa história”. Assim, o segundo que diferencia estar no ano de 2016 de estar no ano de 2017 é apenas uma fração curta de tempo que por si só não altera o curso de nossa caminhada.

Todavia, é quase impossível não se contagiar pelo clima de recomeço que nos cerca. É a sensação de uma nova chance para fazer melhor, muito embora saibamos que o livro da vida é escrito em um improviso sem rascunho. O marco de término de um ano e de início de outro, embora seja uma criação ficta humana, traz o real exercício da reflexão. Na correria do dia-a-dia, deixamos de parar para pensar no antes e no depois; mas a festa de réveillon vem reacender essa chama.

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Nesse processo de reflexão, nos permitimos deixar claro para nós mesmos os nossos desejos, e o que se perdeu no meio do caminho no processo para alcançá-los. E aí vem o motivo que me faz amar a “festa da virada”: Todos ao redor do mundo se enchem do espírito de voltar a lutar pelo que realmente querem, colocando fé que o que está por vir será incrível, ou no mínimo melhor. Ao meu ver, essa capacidade de nos reinventarmos é o mais lindo atributo do ser humano.

Após a contagem regressiva, eu prefiro permanecer em silêncio e apenas observar esse rápido instante, que interpreto em câmera lenta.  As pessoas se abraçam com grandes sorrisos nos lábios. Consigo ver por debaixo da roupa branca a calcinha rosa daquela tia quarentona, e a calcinha vermelha das adolescentes; uma senhora engole com voracidade sete uvas enquanto seu marido corre atrás dizendo para cuspir os caroços para colocar na carteira; sempre há alguém atrasado na contagem e que fica com o espumante gelado ainda fechado, com os olhos perdidos sem saber se “já foi” ou “vai ser”.

Pulam-se ondas, barcos para Iemanjá flutuam, música gospel com gente agradecendo e pedindo proteção. Até judeus ortodoxos (que comemoram a vidada conforme calendário judaico rabínico) olham para os fogos do dia 31 com felicidade. Tudo junto e misturado, numa onda meio Regina Casé. Por um segundo, os problemas viram esperança, a esperança vira fé e a fé se enche de determinação. Uns querem dinheiro, outros querem amor, outros querem paixão, outros querem saber o que querer. Mas alguns, apenas alguns, querem simplesmente um milagre. E dentre eles estão vários pais de crianças autistas que, silenciosamente, de olhos fechados, se imaginam contando para alguns amigos: “E daí, simplesmente em 2017, os sintomas do autismo cessaram, e hoje ele tem alta de todas as terapias. Simplesmente assim.”.

Geralmente não revelamos esse desejo para ninguém. Primeiro, porque as pessoas à nossa volta podem pensar que, de alguma forma, não queremos nosso filho da maneira que ele é. Não é isso. Claro que amamos nossos pequenos exatamente como eles são. Mas todo pai e toda mãe quer que a vida seja o mais fácil possível para nossos filhos. Queremos que tenham facilidade em Português, História, Matemática e Física; que a vida os cerque de pessoas incríveis; que tenham as melhoras possibilidades de emprego; que conheçam o parceiro de suas vidas; que aprendam pelo amor e não pela dor; que consigam todos seus sonhos. Desejamos a nossos filhos toda sorte do mundo porque, no fundo, sabemos que o alcance de nossos braços é limitado, e que a vida impede pais e mães de proteger seus filhos de tudo e todos.

Autismo não representa impeditivo, mas de fato é duro você ver que seu filho tem dificuldade de aprender a falar, a brincar com os amigos, porque sabemos que eles terão que lutar por uma coisa que é geralmente fácil para outras crianças. Nesse sentido, desejamos que o autismo vá embora, porque isso representaria facilidades para nossas crianças. E o fato de o autismo não ser visível, não ter uma marca, representa sempre a possibilidade de que aquilo seja apenas uma fase que vai passar. Embora sejamos conscientes de que não é uma fase, o cérebro diz que não, mas um pedacinho do coração aponta sempre a possibilidade de um certo milagre. Talvez a crueldade do autismo seja exatamente sua maior bondade: a incapacidade de olhar o autismo em características físicas nos enche de uma esperança insana, voraz e algumas vezes até irracional; mas é justamente essa esperança um dos fatores mais incríveis nessa jornada de descoberta sobre nossos filhos e nós mesmos.

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Sempre me falaram que eu deveria acreditar na evolução da minha filha de forma ponderada, pois todo desenvolvimento de autista é um mistério. Com todo respeito a quem assim vê, eu acho essa ponderação impossível para uma mãe. Não há equilíbrio no amor materno (e paterno), apenas uma entrega sem certeza de quais serão os resultados. Sem saber o que era plausível desejar sobre a evolução de minha filha, eu decidi desejar tudo. Houve quem dissesse: se você desejar tudo, que ela simplesmente venha a ter uma vida normal, pode ser que dê certo, mas pode ser que você venha a se frustrar. Para sair do impasse, eu criei uma estratégia: vou desejar tudo para a Gabriela para sempre, pois, se eu desejar e acreditar que ela vai ter a melhor vida do mundo até o último instante da minha vida, eu não vou ter como me frustrar, pois ou meu desejo vai se realizar ou eu vou viver para sempre acreditando.

Se a virada de ano é o momento de desejos, fé e determinação, meu conselho é: deseje alto para o seu filho autista e tenha fé eterna nesse desejo. O desejo não cumprido vira frustração, já o desejo no qual se deposita fé vira determinação – e essa determinação, se inacabável, muda vidas e ilumina o mundo.  Aceite as dificuldades de hoje, sem que elas suprimam sua luta para que os sintomas do autista venham a diminuir ou cessar. Seja ponderado em suas expectativas, mas seja desponderado em seus desejos. Use o cérebro para lidar com o que se esperar de cada momento do tratamento de seu filho autista, mas use o coração para desejar e acreditar que tudo vai dar certo no final.

A festa de hoje é uma invenção humana, mas não posso deixar de pensar que a capacidade de amar é uma invenção divina. O réveillon existe porque precisamos dele; precisamos da ilusão de recomeço, para uma reflexão real sobre aceitação de nosso presente e renascimento de nossos desejos, desaguando na renovação de nossa determinação e fé. Ter um filho autista é, antes de tudo, a capacidade de exercer um réveillon por dia, aprendendo a transformar em eterna a capacidade de aceitar sem parar de desejar e acreditar com a maior fé do mundo. Nesse processo, você terá a ajuda do dia 31 de dezembro, onde todos estarão nessa mesma sintonia. Mas não se esqueça que também terá a ajuda do amor que sente e que recebe de seu filho. Viva esse momento de renovação hoje e sempre.