Desde menino, tenho mais livros do que amigos. Com os livros, sou menos criterioso: abraço até os mais vendidos. Com as amizades, a leitura é crítica: leio e releio os mesmos amigos. O meu círculo de livros é tão vasto quanto um Facebook: aceito até os chatos e os desconhecidos. Já a minha biblioteca de amigos não é nenhuma Alexandria: guardo só os clássicos, novos ou antigos. No capítulo final, tudo é esclarecido: os melhores amigos são grandes histórias; os melhores livros são grandes amigos.
Eu sempre li muito. Às vezes, demais. Até o dia em que percebi que havia vida fora das páginas – os livros são amigos muito ciumentos, seguram-nos com suas histórias e tentam ficar para dormir. Foi assim. Eu tinha onze ou doze anos e estava na biblioteca da escola, meu esconderijo favorito. Numa mesa mais à vista, lia um colega tão rato-de-biblioteca quanto eu. De repente, a professora de português entrou na sala e gritou para ele: “Betinho, eu já falei para você não passar o tempo todo aqui dentro! O dia está lindo! Vá tomar sol, jogar bola, conversar com seus colegas! Você está virando um bicho-de-goiaba!”. Depois de imaginar a estranha metamorfose de um rato-de-biblioteca em um bicho-de-goiaba, decidi que eu não queria aquilo para mim – eu nem sequer gostava de goiaba! A partir daquele dia, passei a ler com um pouco de moderação, fiz mais amigos e descobri que também há belas histórias quando os livros estão fechados. Hoje, se dedico muito tempo à leitura, procuro dedicar todo o tempo à vida.
Sobre isso, há alguns anos, eu escrevi um pequeno conto. Está muito longe de ser um clássico, daqueles que eu guardaria para ler e reler. Mas eu soube que hoje, 12 de agosto, é “aniversário de morte” (essa expressão é muito estranha) do Thomas Mann, autor de A montanha mágica, o livro que eu levei mais tempo para ler – uns sete anos, entre idas e vindas. Como cito o Mann no conto, publico-o neste blog. Espero que ele não se revire (muito) no túmulo depois dessa homenagem:
Livro que se fecha, vida que se abre
Ao erguer os olhos, até então pousados sobre as páginas de um livro de poesias, ele a notou. Linda, com mechas de cabelo descoloridas caindo no rosto, óculos modernos pendendo sobre o pequeno nariz e lábios finos, que se mexiam no ritmo dos chicletes. Aos 19 anos, ele tinha pouca experiência com o sexo oposto. Era extremamente tímido. Encantava-se com as mulheres na mesma medida com que as temia. Quando uma delas dirigia-lhe um simples cumprimento, seu coração disparava, as mãos suavam, os lábios secavam, as palavras faltavam. Romances em sua vida, só os das estantes da biblioteca, onde estava.
Ele esperava para emprestar o livro de poesias. A garota que chamava a sua atenção estava parada na fila ao lado, das devoluções. Ao notar que ela carregava duas obras de autores alemães, foi arrebatado. Eram dois dos maiores clássicos de todos os tempos: A montanha mágica, de Thomas Mann, e Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Conhecia-os tão bem que podia recitar trechos inteiros. Sentia até que compartilhava muitas de suas dúvidas e frustrações com aqueles cavalheiros da literatura germânica.
Ela notou que ele a olhava e sorriu. Covinhas. Bola de chicletes. Ele sentiu o coração subir para a garganta. “Linda leitora! És perfeita! Tenho a oportunidade de uma vida! Até que a morte me leve, lutarei por teu amor!”, declamou, em pensamento. Inspirou profundamente e caminhou em direção à dama. Ensaiou uma cantada. Queria demonstrar sensibilidade e exibir seus conhecimentos literários.
– Tu és tão doce quanto Carlota e tão misteriosa quanto Clawdia Chauchat. Muito prazer, eu sou um filho enfermiço da vida, como Hans Castorp. Sem a tua atenção, sofrerei como Werther.
– De quem você está falando? Carlota, Clawdia? Você está me confundindo com alguém – ela respondeu.
– São as personagens desses livros que estão na sua mão! Você não os leu?
– Não! Peguei esses livros para a minha mãe! Não gosto muito de ficção. Prefiro a vida real! Mas o que você queria mesmo?
– Perdoe-me. Confundi você com outra pessoa – disse ele, com a voz fraca, desaparecendo entre a vergonha e a frustração. Retornou à fila e tentou recomeçar a leitura. Quando finalmente conseguiu recuperar a concentração, voltou a se agitar. Fechou o livro num golpe, largou-o em cima de uma mesa e saiu à procura da menina dos romances alemães, que já deixara a biblioteca. Enquanto corria, repetia o que acabara de ler, a frase inicial da Oda al libro, de Neruda: “Libro, cuando te cierro abro la vida”.
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