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Bandidos de toga? Eu já sabia! Aliás, quem é que não sabia?

Sir Richard Steele e Washington Irving / Wikimedia Commons
De toga, sem toga: há bandidos vestindo todos os modelos de roupa e atuando em todas as áreas

Alguém aí duvida que existam magistrados bandidos? E médicos safados? E policiais corruptos? E jornalistas mentirosos? E advogados trapaceiros? E padres pedófilos? Se você duvida, prepare-se para uma revelação que vai mudar a sua vida: tudo isso existe e, pior, Papai Noel não existe! Mas, calma, não é preciso perder as esperanças. Nem todos são maus. Também há os bons (diz-se, inclusive, que são a maioria e que bebem refrigerante). Há até, acredite, políticos honestos – que los hay, los hay.

Gracejos preliminares à parte, todos nós sabemos que há gente (mais ou menos) boa e gente (mais ou menos) ruim em todo lugar, ocupando toda espécie de cargo e vestindo todo tipo de roupa, inclusive a toga. Eu sei disso. Você sabe disso. A torcida do Flamengo sabe disso (está lá no cartaz: “Eu já sabia”). A ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, mostrou que, claro, sabe disso, ao afirmar recentemente que a magistratura “hoje está com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga”. Mas, incrivelmente, tem gente que parece não saber disso, gente que ainda deve esperar pelo Papai Noel na madrugada de Natal – ou, pior, que finge não saber e quer viver (ou fazer com que os outros vivam) uma ilusão.

Como se vem acompanhando pela imprensa, o ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criticou veementemente as afirmações da corregedora. Em nota de desagravo, que Peluso leu na frente de Eliana Calmon, o Conselho repudiou as declarações “que de forma generalizada ofendem a idoneidade e a dignidade de todos os magistrados e de todo o Poder Judiciário”. Penso que se combate com muito exagero as generalizações. Quase nunca elas são, efetivamente, generalizações, que abrangem todo um conjunto ou uma classe. Dizer que há “problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga” é muitíssimo diferente de dizer que “todos os magistrados são bandidos” – essa sim uma verdadeira generalização, e absolutamente incorreta.

Aliás, em março deste ano, em seminário sobre segurança pública realizado em São Paulo, o próprio Peluso, que repudia “generalizações”, disse que a corrupção policial é uma “questão crônica” no país. Na ocasião, ele citou três ou quatro casos de corrupção policial. Poderia citar centenas, certamente – assim como se poderiam citar diversos casos de corrupção na magistratura (já se puniu até ministro de tribunal superior por desvios). Por que o presidente do STF falou abertamente da corrupção policial? Porque todo mundo sabe que há policiais corruptos, ora essa! São todos? Não! Mas eles existem! E é motivo para os policiais perderem tempo negando o inegável? Não! É motivo, sim, para eles se esforçarem para acabar com a corrupção!

Enfim, como cidadão que sabe que há bons e maus magistrados (e que os bons são, realmente, a grande maioria), deixo aqui meu apelo ao CNJ, que tanto bem vem fazendo ao Judiciário (e espero que continue assim, com seus poderes de investigação e punição intactos), e aos magistrados que se sentiram ofendidos com as obviedades ditas pela ministra (como o óbvio é ignorado nesse país): não fechem os olhos, não finjam acreditar em Papai Noel! Uma infiltração não é uma inundação. Mas pode vir a ser, se ignorada. O espírito de corpo pode colocar tudo a perder: a infecção em um membro, se não for contida, pode se espalhar para todo o corpo. Às vezes, é melhor cortar a mão para não perder o braço. É triste, é dolorido, mas é como as coisas funcionam no mundo real. E todo mundo sabe disso, ou não?

Sérgio Moraes / Ascom / AGU
A corregedora Eliana Calmon e o ministro Cezar Peluso, antes da “crise”: muita briga por algo que todo mundo já sabia

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Agudas

– Concordo com a Dora Kramer: a reação desmedida dos magistrados ofendidos com as afirmações da ministra Eliana Calmon foi tiro nos pés bem calçados. Se não houvesse tanta revolta, as declarações da corregedora não teriam repercutido tanto.

– Se eu fosse o Peluso, presidente do CNJ, ficaria feliz por saber que minha corregedora está atuando com seriedade e firmeza, identificando a existência de bandidos de toga e trabalhando para extirpá-los e fazer do Judiciário um Poder livre de corrupção (já é o menos corrupto, na minha opinião) – afinal, em última análise, é essa a função da corregedora.

– A nota de desagravo do CNJ afirma também que as declarações da corajosa (no Brasil, é preciso ter coragem para dizer a verdade) ministra Eliana Calmon “desacreditam a instituição perante o povo”. Ora, alguém duvida que o Judiciário (como todos os outros Poderes e quase todas as instituições) já está, há muito tempo, desacreditado perante o povo? O último dado do Índice de Confiança da Justiça (ICJBrasil, elaborado pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas), do quarto trimestre de 2010, mostra que a população dá nota 4,2 ao Judiciário – nada menos que 64% das pessoas ouvidas pela pesquisa disseram que a Justiça é pouco ou nada honesta.

– Aliás, já está na hora de se abandonar esse “paternalismo” incapacitante, essa ideia de que não se pode falar uma verdade porque “todo mundo vai entender errado”, esse argumento ultrapassado segundo o qual o povo não entende nada direito e, por isso, é preciso iludi-lo com “mentirinhas” (“não existe nenhum bandido de toga”), como se faz com as crianças (“hoje à noite o Papai Noel vem”). Chega de pensar que todos os brasileiros são ignorantes (muitos são, nem todos)! Essa sim é uma generalização maléfica!

– Antes de terminar, quero confessar uma coisa: sou um grande admirador da magistratura. Penso não haver tarefa mais difícil a um ser humano minimamente consciente do que julgar os atos de outra pessoa, praticamente uma atribuição divina – tanto que se diz que “só Deus pode julgar” (infelizmente, alguns magistrados acham que julgar é fácil… pensam que são deuses). Quando comecei a estudar Direito, tinha certeza de que queria ser magistrado. Hoje, formado, já não sei… Se um dia eu sentir que é minha vocação, quem sabe… De qualquer forma, desejo sorte a todos os que já seguem ou pretendem seguir o caminho da magistratura. Espero que vocês tenham feito essa opção por amor à justiça, por apego à verdade, e não pelos três S (segurança, salário, status). Assim, um dia, espero, poderemos duvidar da existência de bandidos de toga.

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