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Crônica de um Brasil crônico

Senhores, posto que muitos outros escrevam a Vossas Altezas as notícias desta Vossa terra, não deixarei de também dar disso a minha conta a Vossas Altezas, assim como eu melhor puder, ainda que talvez não o faça tão bem quanto os outros.
Todavia, tomem Vossas Altezas minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creiam que, para aformosentar nem afear, aqui não hei de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu
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Da: www.embaixadadeportugal.jp
Reprodução da carta de Pero Vaz de Caminha: primeira crônica do Brasil

Não deve haver melhor dia para iniciar um blog de crônicas do que o 1.º de maio, data daquela que é considerada a primeira crônica escrita em terras brasileiras (então ainda Ilha de Vera Cruz): a carta de Pero Vaz de Caminha para o Rei de Portugal D. Manuel. Há 511 anos, Caminha descrevia os detalhes do “achamento” do nosso país. Aproveito, então, para revisitar trechos dessa certidão de nascimento do Brasil – no parágrafo acima, adaptei o início da carta do narrador português.

Sabem aquela tal “saudade do que não conheci”? Pois foi o que eu senti ao ler o texto do Caminha pela primeira vez – ah, aquela gente pura. Já numa segunda leitura, reconheci alguns de nossos problemáticos traços atuais naquele povo nativo que via o “homem branco” pela primeira vez – e também no tal do “homem branco”. Interrompi a terceira leitura na metade, com a conclusão: pau-brasil que nasce torto, nunca se endireita.

Um de nossos traços mais marcantes já era notado por Caminha: a falta de vergonha. Nosso primeiro repórter observou que os nativos da terra recém-descoberta andavam nus e nem faziam “mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara”. Acho que li algo parecido em uma revista de “celebridades” no último Carnaval – se não li, poderia ter lido. É verdade que, na sequência, Caminha tentou aliviar: “acerca disso são de grande inocência”. Inocentes até que se prove o contrário, em última instância e com direito a todos os recursos imagináveis, acrescentaria, se fosse político o Caminha. Mas era um inocente escritor, deixando-se levar pelo mito do bom selvagem. Tudo bem. Ele merece um desconto. Afinal, até hoje há quem se considere bom selvagem. Selvagem, sim. Bom, nem tanto.

Outro traço do brasileiro assinalado por Caminha: a falta de educação. “E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram”, escreveu o narrador lusitano. É triste notar que, cinco séculos depois, ainda não tenhamos aprendido a ser corteses – um “bom dia” e um “com licença” são hoje artigos raros como um móvel de pau-brasil. Em outro trecho, relatou Caminha: “Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém.” Ah, a maravilha da civilização. Caminha quase ficou surdo com a barulheira dos nativos. Hoje, nossos ouvidos sofrem com britadeiras, sirenes, buzinas e carros com equipamentos sonoros de potência inversamente proporcional à qualidade do som que reproduzem – nada como ensurdecer com a hit parade.

De fato, a história mostra que somos folgados e gostamos de farra desde as origens. Segundo o cronista da nau Capitania, os primeiros brasileiros ficavam “dançando e folgando (…). E faziam-no bem.” Nisso sempre fomos bons, é verdade. E melhoramos muito depois que nos apresentaram o vinho, apesar de preferirmos a aguardente e a cerveja. Conforme Caminha: “(…) alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade!”. E bota boa vontade nisso. Atualmente, o Brasil é um dos países que mais consome bebida alcoólica – média anual superior a 6 litros de álcool puro por pessoa. Na época de Caminha, pelo menos a bebedeira era mais segura: os acidentes de canoa (se beber, não reme; se remar, não dirija) eram menos graves do que os de carro.

Em outro trecho da carta, o narrador lusitano deduz que os nativos brasileiros eram “gente bestial e de pouco saber”. Ah, se o Caminha pudesse nos ver hoje… não teria impressão muito diferente. A Unesco, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para a cultura e educação, colocou o Brasil em 88.º lugar (entre 127 países) no ranking de educação de 2011. Além disso, como aqueles nativos que os navegantes portugueses conheceram, atualmente, 14 milhões de brasileiros com mais de 15 anos não sabem ler nem escrever.

Não sei como o Caminha escreveria sua carta hoje, cinco séculos depois do “achamento” desta nossa terra. Talvez trocasse as 27 páginas de papel do documento original por uma frase de 140 caracteres, para caber em seu twitter: “Achamos uma boa terra e parece que tem dono, mas um nativo garantiu que dá um jeitinho de nos arranjar uma escritura quente em nome d´El-Rei”. Seja como for, seria bom que os nossos “reis” do Brasil de hoje lessem a velha carta de Caminha, em especial uma das últimas frases: “o melhor fruto que dela (da terra brasileira) se pode tirar parece-me que será salvar esta gente”. É isso. Os reis de outrora fizeram nosso “achamento”. É hora dos “reis” atuais promoverem o nosso salvamento – se pararem de nos atrapalhar, já está de bom tamanho.

* A íntegra da carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel pode ser lida aqui.

Agudas

– Caminha ficou encantado pelas nativas brasileiras: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam”. Cinco séculos depois, homens do mundo todo vêm conhecer nossas moças “bem novinhas e gentis” e que não se envergonham – como denunciou o Fantástico recentemente;

– “Precisamos descobrir o Brasil!” (Carlos Drummond de Andrade, em Brejo das Almas);

– “Aliás, os velhos problemas do Brasil possuem isto em comum: perene atualidade. À falta de uma corajosa solução dos governos, continuam sempre atuais.” (Cassiano Nunes, em O patriotismo difícil).

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