Depois de ler, na semana passada, as irritantes notícias vindas do Congresso Nacional sobre muito crime e pouco (ou pior, nenhum) castigo, aproveitei o feriado prolongado desta semana para uma leitura revigorante: a narrativa de um caso em que o bandido sofre uma crise de consciência por conta de sua conduta criminosa e se entrega à polícia. Seria um refresco para a minha sede de justiça, não fosse o fato de se tratar de ficção (só podia ser): refiro-me ao livro Crime e Castigo, clássico do escritor russo Dostoiévski.
Peço desculpas por contar o final da história, mas, impressionado com a originalidade do desfecho da trama, não resisti à tentação. Originalidade, sim, ao menos para nós, brasileiros – apesar de Crime e Castigo ter sido publicado em 1866. Afinal, estamos acostumados a ver bandidos (especialmente os de colarinhos brancos ou colares de pérolas) negando até a última instância a autoria de crimes dos quais há provas incontestáveis, mentindo descaradamente, sem uma gota de remorso, sem um pingo de vergonha – ao contrário, até com um asqueroso orgulho de ter passado os outros para trás. E ficando sem castigo, é claro.
Protagonista de Crime e Castigo, o jovem Raskólhnikov elabora uma transtornada teoria segundo a qual a humanidade se dividiria grosseiramente em duas classes. Uma classe seria composta por pessoas inferiores, “unicamente proveitosa à procriação da espécie*”, homens “disciplinados, que vivem na obediência e gostam de viver nela*”; enfim, o que hoje se chama pejorativamente de “massa” ou “povão” – no Brasil, com pouquíssima disciplina, convenhamos. A outra classe seria formada por pessoas especiais, “homens extraordinários*”, que, por possuírem “o dom ou a inteligência*” (ou a cara-de-pau, acrescento) para alterarem os destinos da coletividade, teriam um “direito ao crime*”, podendo passar por cima dos outros sem se submeterem a regras – como os “legisladores e os fundadores da humanidade*” (figuras como Napoleão), que “tinham sido criminosos, se mais não fosse porque, ao promulgarem leis novas, aboliam as antigas*” e “certamente não se teriam detido perante o sangue*”.
Infelizmente, muitos dos nossos políticos parecem adotar de maneira torpe a teoria de Raskólhnikov: consideram-se especiais, acima das leis, portadores de um “direito ao crime”. E despudoradamente passam por cima de nós, os obedientes “inferiores” – que rima com eleitores. Na ficção, Raskólhnikov fica realmente doente por conta do turbilhão emocional que acompanha seu crime, mas não deixa de comparecer perante a autoridade policial para prestar esclarecimentos. Na realidade brasileira, políticos corruptos e afins inventam “doenças” para justificar ausências às convocações em investigações das quais são alvos. Na ficção, com muitas ponderações existenciais, o jovem russo se entrega à Justiça. Na vida real, com muitos recursos judiciais, os políticos corruptos brasileiros fogem da Justiça – que não os encontra, apesar de todo mundo saber onde eles estão.
Na Rússia de Dostoiévski, Raskólhnikov, que se julgara um “especial”, acima da lei, foi condenado a realizar trabalhos forçados na Sibéria. No Brasil de nossa gente, os criminosos com mandato ou cargos “especiais” julgam-se acima da lei e, muitas das poucas vezes em que são condenados pela Justiça, são “absolvidos” pelos eleitores. Somos todos Dostoiévskis e podemos escrever nossa História de outra forma, com um final mais feliz para todos nós – e menos agradável para os corruptos. Não precisamos mandá-los para trabalhos forçados na Sibéria (nem podemos), ainda que a vontade seja enorme. Basta que protestemos civilizadamente, mobilizemos nossas forças para uma pressão legítima e democrática contra os corruptos, e, sobretudo, que não os (re)elejamos. Afinal, para muitos dos políticos profissionais (os que são verdadeiros ladrões profissionais do setor público), ficar sem mandato e precisar trabalhar honestamente (se desonestamente, sem a graça do foro privilegiado) é uma fria pior do que a Sibéria.
*DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução de Natália Nunes. Porto Alegre: L&PM, 2007, pgs. 285-287.
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