Há tempos, ao sair para uma reportagem, parado num semáforo, notei uns adolescentes sendo abordados por policiais. Fiquei atento, pois poderia render alguma matéria. Mãos na parede, pernas abertas, mas tudo conduzido de maneira educada, sem quaisquer agressões e até com pedidos de “por favor” por parte das autoridades. Os policiais nada encontraram de irregular e dispensaram os adolescentes: “circulando!”. O motorista do carro em que eu estava, fã de programas policiais, comentou: “os elementos deviam estar em atitude suspeita”. “Se estão em atitude suspeita, é melhor dar uma conferida mesmo”, respondi. E o motorista, com a sabedoria típica dos profissionais da boleia, que observam atentamente a vida passar pelo para-brisa e por todos os espelhos retrovisores, completou: “A verdade é que, com a panca daqueles moleques, qualquer atitude é suspeita”.
Lembrei-me da única vez em que eu sofri uma abordagem policial. Foi em São Paulo, em 1999, enquanto eu chegava ao Anhembi para assistir ao show mais aguardado da minha vida: Metallica, com o Sepultura abrindo os trabalhos. Eu tinha 16, quase 17 anos. Estava acompanhado do meu irmão e de alguns amigos, integrando uma excursão saída de Cascavel. Eu não tinha exatamente aquela panca capaz de despertar a atenção das autoridades (era um CDF com uns pelos descoloridos no queixo e brinco na orelha esquerda… talvez tivesse panca, sim), mas um amigo meu era a panca em pessoa: cabeludo, jeans rasgado, correntes, meio Axl Rose do velho Oeste, tudo isso revestindo um espírito bonachão (mas o espírito não se vê na panca, infelizmente). E eu estava ao lado dele quando, atravessando uma rua próxima ao local do show, fomos parados por uma baita camionete da polícia. Quatro policiais enormes, com pancas de G.I. Joes, saíram do veículo, armados até os dentes, como se fossem prender um terrorista. “Vocês dois, mão na viatura”, um Joe disse para nós. “Sim, senhor”. Revista básica, com um pouco de truculência, mas sem agressões. “Documentos”, continuou o policial. Abrimos as carteiras, mostramos as identidades – a minha era de quando eu tinha onze anos, com cara de campeão das Olimpíadas de Redação. “Tirem tudo das carteiras”. Tiramos até as sementes de romã do réveillon. Ele nos olhou severamente. Tive medo de que a nossa panca nos rendesse umas pancadas. Mas ganhamos apenas um sonoro “circulando!”.
Segundo o dicionário Michaelis: “Estar na panca: estar bem vestido, elegante. Só tem panca esse sujeito: só tem pose, só tem aparência ou ostentação”. A panca engana, e, em parte, está nos olhos de quem a vê. “No primeiro dia de aula, a caminho da universidade, percebi um cara mal-encarado no ônibus. Era grande, usava um cavanhaque estranho, uma boina de revolucionário, roupa folgada e brinco. Quando desci no ponto próximo à universidade, o mal-encarado também desceu. Entrei no campus, e o cara me seguindo. Entrei no prédio do meu curso, e lá veio o grandão estranho. Apressei o passo, entrei na sala da minha turma e, pouco depois, o mal-encarado passou pela porta. Achei que fosse me assaltar. Era você.” Mais ou menos assim, um grande amigo me contou, tempos depois de nos conhecermos no curso de Jornalismo, sobre sua primeira impressão a meu respeito. Morávamos no mesmo bairro, pegávamos o mesmo ônibus, cursávamos a mesma faculdade. Antes de me conhecer, ele não foi com a minha panca. Ficou meu amigo depois que percebeu que o mal-encarado que parecia persegui-lo era, na verdade, um piá nerd do interior dando uma de panaca cheio de panca, tentando intimidar os bichos-papões da cidade grande, que tanto o intimidavam.
É triste isso, mas, em tempos tão violentos (talvez sempre tenham sido), quase todos nós suspeitamos das pancas alheias. É autoproteção, ou o que outro velho amigo chama de “estratégia da codorninha”, uma estratégia que repassou aos filhos e agora vai ensinar aos netos, mais ou menos assim: “A codorninha está sempre atenta aos predadores, move-se com cuidado, em alerta, preparada para agir. Precisamos usar a estratégia da codorninha, devemos estar sempre atentos às ameaças, aos perigos que nos cercam, prontos para fugir ou reagir”. As codorninhas entendem de panca, identificam seus predadores, mas talvez não saibam que alguns lobos se vestem em pele de cordeiro e que alguns lobos não são maus, que há meninas de chapeuzinhos vermelhos muito mais perigosas. Com isso em mente, tento não julgar outros panacas por suas pancas, mas é quase inevitável. Já levei broncas por atravessar florestas escuras e quase fui parar na barriga de alguns lobos. Então, como ninguém quer arriscar o final feliz, diria a mamãe: “Chapeuzinho vermelho, todos somos iguais, todos somos filhos de Deus, todos devemos respeitar os outros e não julgá-los, mas, por favor, sem dar pancada em ninguém, cruze para a outra estrada da floresta quando der de cara com um lobo de panca suspeita… Ah, e tire esse chapéu, porque ele te deixa com uma panca…”.
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