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Sem licença para os caras-de-pau

Montagem sobre foto de Maria Li / Stock.Xchng
Cara-de-dou-licença: alvo dos caras-de-pau

Até há pouco tempo, sofri gravemente de um “mal de família”, uma condição passada de geração para geração, do meu avô para o meu pai, do meu pai para mim. Comecei a perceber cedo as manifestações dessa determinação hereditária. Na escola, as colegas (até as mais desajeitadas) pediam, com ou sem jeitinho, e eu prontamente me encarregava de suas tarefas – sem ganhar nem um cafuné em troca. No clube, os amigos reclamavam da mesada curta e eu pagava refrigerante para todo mundo – e nunca recebia a grana de volta. Na festinha, atendia aos pedidos dos companheiros de guerra, cedia minha vez na linha de frente para a dança com a menina mais bonita, e acabava com um canhão qualquer – às vezes, com a vassoura. Enfim, a partir dos sintomas e do meu histórico familiar, foi fácil o diagnóstico: eu era portador de “cara-de-dou-licença”.

O tempo de convívio com essa condição fez com que eu me adaptasse e aprendesse a combater as suas manifestações mais agudas – mas ainda hoje tenho recaídas. Sabe aquele cara que fica segurando a porta do elevador, do lado de fora, para alguém entrar, e vem mais gente, e ele continua sorridente segurando a porta do elevador, e vem mais gente ainda, e ele continua dando uma de porteiro feliz, e, quando ele vai entrar, não há mais espaço para ele? Sou eu.

Não é todo mundo que identifica um cara-de-dou-licença, que enxerga a aura que nos envolve, a quase invisível marca de “abuse à vontade” inscrita em algum lugar entre a testa e o queixo. Quem não é capaz de notar isso, geralmente nos chama de “gentis” ou “corteses”. Até aí, a gente agradece. O grande problema é que os caras-de-dou-licença são facilmente identificados pelos portadores de uma condição oposta: os “caras-de-com-licença”, popularmente conhecidos como “caras-de-pau”. Esses nos tratam por “otários” ou “manés” – e se autodenominam “espertos” ou “malandros”.

No momento em que topam com os caras-de-pau, os caras-de-dou-licença são revelados. E a situação mais propícia à observação desse fenômeno é a fila – de supermercado, de banco, de trânsito. Sabe aquele cara que tenta furar a fila? É um cara-de-pau. Sabe aquele que dá a vez na fila para o cara-de-pau? É um cara-de-dou-licença. Como um vírus traiçoeiro, os caras-de-pau identificam à distância a célula mais frágil do organismo, o cara-de-dou-licença, e vão direto nele, que cede, sem conseguir resistir à própria condição.

Como já escrevi, tenho conseguido lidar com isso. Agora, quando identifico um cara-de-pau, reúno minhas forças e resisto. Dia desses, eu estava na fila dos caixas de uma loja. Sem trocar palavra, apenas baseados num senso comum de organização e justiça, eu e os demais consumidores formamos uma fila única, diante de um caixa, e, conforme os guichês eram liberados, seguíamos para o atendimento. Quando eu já estava na dianteira da fila, uma senhorita postou-se ao meu lado, diante de outro caixa, em vez de se colocar atrás dos demais enfileirados. Fiquei matutando sobre o que devia se passar na cabeça daquela cara-de-pau – será que ela pensava que, parvos, estávamos todos esperando o atendimento de um único caixa, que não havíamos tido a brilhante ideia de nos dividir entre os outros guichês? Cheguei a pensar que, talvez, a condição de cara-de-pau bloqueasse o funcionamento de partes do cérebro, e que, diante de uma incapacidade tão triste, eu devesse deixar a senhorita passar à minha frente. Mas isso foi só até eu olhar para trás, ver os rostos sofridos dos meus colegas de fila e compará-los à fresca cara-de-pau da moçoila. Chamei-a, então: “Com licença, a fila é única”. Ao que ela retrucou, com o óleo de peroba começando a escorrer pelas faces: “Ah, não tem nenhuma placa indicando isso”. Respirei profundamente e respondi: “Estamos todos aqui, em fila. Precisa de placa?”. Surpreendida pela reação inesperada de um cara-de-dou-licença, a cara-de-pau ficou sem ação e foi para o final da fila, soltando farpas. Naquele momento, arranquei a placa de “dou licença” que estava pregada na minha cara. Sigo tentando ser gentil e cortês, mas cassei a licença dos caras-de-pau.

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