Crise, conflitos políticos e sociais, desentendimentos institucionais. Em época de escassez, as demandas tornam-se invencíveis e os conflitos acirram-se. O orçamento público torna-se o centro do debate sobre a reforma, junto com outros assuntos de interesse da República. Entretanto, é o orçamento que impacta diretamente a vida da população e, por isso, mais atenção deve recair sobre ele.
A Constituição de 1988 foi generosa nas normas orçamentárias. Primeiro, na quantidade, pois, a exemplo das constituições anteriores, dedicou sessão própria. A doutrina jurídica a nomeia de “Constituição Orçamentária”. Depois, pela qualidade. Previu direitos, e junto a eles trouxe recursos que os sustentam. Direitos fundamentais e sociais são conquistas brasileiras inegáveis, devendo haver respeito à liberdade, à igualdade, à vida. Os recursos foram garantidos por vinculações de impostos a finalidades constitucionalmente estabelecidas: saúde e educação, sobretudo.
Impostos são, em regra, desvinculados de “despesa, órgão ou fundo”, e sua vinculação é inconstitucional. Porém, para saúde e educação (além de outras áreas delimitadas), a Constituição autoriza a vinculação.
Nos termos da Constituição, a “União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”. Essa vinculação de impostos é originária, presente no texto desde 1988.
Quanto à saúde, a vinculação surgiu com a Emenda Constitucional 29/2000. Os percentuais foram definidos pela própria Constituição (provisoriamente), depois por Lei Complementar e, atualmente, Emenda Constitucional alterou alguns dos percentuais. Hoje, a União deve aplicar 15% da Receita Corrente Líquida, anualmente, em saúde, enquanto que Estados aplicarão 12% dos impostos e transferências e Municípios, 15% (a União está em fase transitória e deverá aplicar 15% da RCL a partir de 2020).
Durante a crença na bonança econômica (o período de tempo que antecedeu a crise atual), dinheiro fluiu livremente. Havia recursos suficientes para atender a maior parte das demandas sociais. Com o advento da nova realidade, na qual a escassez torna-se a nova tendência, as demandas mantêm-se, mas a oferta é solapada pela insuficiência orçamentária. E, assim, surgem todos os conflitos sociais que presenciamos.
Por isso, sugiro o primeiro ponto do debate sobre o futuro do orçamento público: a rediscussão da eficácia e qualidade das vinculações constitucionais. A Gazeta do Povo noticiou que “Levantamento do Tribunal de Contas do Paraná mostra que os municípios com maior gasto per capita em educação nem sempre ofertam ensino de qualidade” (clique aqui). Na análise dos dados, conclui-se que não é verdadeira a correlação entre quantidade de recursos e qualidade do serviço – sempre pareceu-me óbvia tal constatação.
A vinculação de impostos a despesas faz prevalecer uma vontade estática em detrimento à realidade e à deliberação política. É verdadeiro que garantiu, desde 1988 (2000, no caso da saúde) recursos que desenvolveram a educação e os serviços de saúde, mas retira-se o debate político – inclusive popular – que deve se instaurar em todos os anos.
Para economistas entrevistados pelo jornal O Estado de S. Paulo, “dinheiro carimbado trava gestão”. Para os que defendem a manutenção do cenário atual, “a vinculação é uma garantia de que o dinheiro não será desviado” e “outra corrente, preocupada com a saúde das contas públicas, acredita que elas engessam a gestão do recurso, causam distorções no uso do dinheiro e, pior, sem garantir qualidade na prestação do serviço, porque ninguém avalia ou cobra o resultado final” (clique aqui). Alinho-me à segunda corrente.
A quantidade disponível para utilização obrigatória em determinada finalidade não é garantia de políticas públicas eficientes e efetivas. Cria-se a obrigação do dispêndio, mas se não cria a obrigação de cumprimento de metas em relação ao montante aplicado. Ou seja, o que é desejável não é a quantidade de dinheiro gasto, mas os resultados alcançados. E esse é o primeiro ponto da proposta de revisão do Orçamento Público: deve-se gastar bem, e não gastar muito.
Nos próximos posts desenvolverei o assunto e abordarei outras propostas.
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Em todos os anos, uma das avaliações da disciplina de Direito Financeiro é baseada em um artigo jurídico. No ano passado, vários excelentes artigos, dignos de publicação em revistas jurídicas, foram redigidos pelos alunos do terceiro ano da Faculdade de Direito da UFPR. Entre os artigos, ao menos dois foram revistos por mim e autorizados pelos autores para divulgação. Abaixo, publico-os:
1) Precatório: linhas gerais do ofício precatório e análise de jurisprudência do inadimplemento do ente federado (de Guilherme Martelli Moreira, João Vitor Grycajuk, Murilo Henrique Garbin). Clique aqui.
2) Orçamento público, crise econômica e participação popular: uma reflexão jurídica sobre a onda popular pela redução dos subsídios dos vereadores de Curitiba (de Beatriz Gualberto Barroso). Clique aqui.
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