*publicado originalmente em direitodoestado.com.br.
Um jovem repórter da ONG Contas Abertas, Guilherme Oliveira, iniciou uma pesquisa sobre remunerações dos agentes públicos de Brasília. Aconteceu em 2012 e foi retratado pela jornalista Clara Becker (Taquígrafos em Polvorosa, Revista Piauí, Edição 74, nov/2012 – clique aqui). Com tranquilidade, e sem qualquer empecilho, Oliveira pesquisou o subsídio da então Presidente Dilma (R$19.818,49 líquidos, na época). O portal da transparência do Poder Executivo Federal é de livre e anônimo acesso.
No Senado Federal, nos idos de 2012, para se ter acesso à remuneração, era preciso o preenchimento de dados pessoais – atualmente, o acesso é livre. A exigência não trouxe boas experiências para Guilherme. A Revista Piauí narrou seu infortúnio:
“uma servidora não se conteve e ligou para tirar satisfação com o xereta impertinente. ‘É o Guilherme que está falando? Aqui é uma servidora da taquigrafia do Senado. Queria saber se foi você que acessou meu contracheque ontem.’ O rapaz confirmou. ‘E ficou satisfeito com o que viu?’ Sim, ele tinha ficado. ‘Então passe bem.’”.
Clara Becker contou outro caso. Um analista judiciário do TSE desejava saber quanto recebia um servidor do Legislativo. Buscou os vencimentos de uma taquígrafa e descobriu que ela recebia, em 2012, R$22.268,90 líquidos. Logo depois, recebeu um email malcriado da própria taquígrafa.
A confusão não terminou aí. O sindicato interveio; o Judiciário, que inicialmente concedeu liminar para manter os vencimentos secretos, voltou atrás (a liminar foi derrubada). Os servidores alegavam que a revelação dos dados financeiros causa insegurança, com riscos pessoais.
O episódio desvela a dificuldade que o Poder Público tem para lidar com a transparência. Não podemos nos esquecer que transparência e democracia caminham juntas. Quão mais transparente um Estado, mais democracia existe. Um país em que a transparência é falha será um país democraticamente incompleto.
Pleitos pelo Estado transparente não são recentes. Nos EUA, Warren e Brandeis (WARREN, Samuel D., and BRANDEIS, Louis D. “The Right to Privacy.” Harvard Law Review, vol. 4, no. 5, 1890, pp. 193–220. JSTOR, clique aqui) foram os primeiros a defender a privacidade como um direito. Ressaltaram em seu texto, contudo, que matérias de interesse geral e público não estão sujeitas a limitações.
Já Jeremy Bentham publicou o texto Of Publicity . Para ele, sigilo é um instrumento de conspiração: “sem publicidade ou transparência, nenhum bem é permanente: sob os auspícios da transparência, nenhum mal permanece”. Para Bentham, são razões para a transparência: 1) para constranger os membros de uma assembleia a atender seus deveres; 2) para assegurar a confiança das pessoas, e seu assentimento com as medidas da legislatura; 3) para habilitar os governos a conhecer os desejos dos governados; 4) numa assembleia eleita pelas pessoas, e renovada de tempos em tempos, transparência é absolutamente necessária para habilitar os eleitores a agirem com sabedoria; 5) para prover a assembleia com os meios de se enriquecer pelas informações do público. Em síntese, age melhor a assembleia transparente, que sofra controle do eleitor, que sofra com as consequências dos seus atos.
Sigilo, no ambiente público, sempre será a exceção. Porém, não paramos aqui, pois a transparência está inserida em um contexto mais amplo: a accountability. Accountability representa uma diversidade de significados: responsabilidade, controle, transparência, responsividade. Não possui tradução exata no Brasil. Estudiosos já buscaram sua tradução, mas sem sucesso. Ilton Norberto Robl Filho afirma que “estruturalmente, accountability significa a necessidade de uma pessoa física e jurídica que recebeu uma atribuição ou delegação de poderes prestar informações e justificações sobre suas ações e seus resultados, podendo ser sancionada política e/ou juridicamente pelas suas atividades” (ROBL FILHO, Ilton Norberto. Conselho Nacional de Justiça. Estado Democrático de Direito e Accountability. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 30). Como o autor demonstra, há a accountability vertical eleitoral, vertical social, horizontal institucional, legal, judicial.
Na accountability horizontal, o agente deve ser accountable perante outro agente competente. Serão agentes estatais os controladores de outros agentes estatais – como, por exemplo, o Tribunal de Contas, o Poder Judiciário, as Comissões Parlamentares de Inquérito. Na vertical, o agente deve ser accountable perante a sociedade, com o desvelamento de informações para controle social.
Não está bem clara a eficácia da accountability vertical. Segundo Guillermo O’Donnell, mediante eleições livres, eleitores podem “punir ou premiar” um mandatário. E, com acesso a variadas fontes de informação e liberdade de expressão, os cidadãos podem reivindicar e protestar em face de políticos. Esses são elementos necessários à existência de uma poliarquia (clique aqui para ler o artigo de O’Donnell)
Dizia O’Donnell que “o canal principal de accountability vertical, as eleições, ocorre apenas de tempos em tempos. Além disso, não está claro até que ponto elas são efetivas como mecanismo de accountability vertical”. Ainda conforme o autor, “análises recentes introduzem uma nota cética quanto ao grau em que as eleições são verdadeiramente um instrumento pelo qual os eleitores podem punir ou premiar candidatos, mesmo em poliarquias formalmente institucionalizada.” Por isso, defende O’Donnell a vertente da accountability horizontal como sendo eficaz e mediante, entre outros instrumentos: controle por partidos de oposição, profissionalização de tribunais de contas, profissionalização e autonomia (orçamentária) do Judiciário, informação confiável e disseminada, mídia livre (que pressione o funcionamento da accountability horizontal).
Fontes de informação confiável (mais a mídia livre) são imprescindíveis elementos para que se proceda ao controle social (integrante da accountability vertical). No Brasil, não ocorre a depuração dos dados de forma satisfatória, diante da dificuldade para se informar o eleitor (diante de déficit de cognição, compreensão). Dessa forma, a accountability vertical torna-se ainda mais distante e a transparência inócua. Em outras palavras, a transparência só possui relevância se o agente controlador compreende o que lhe é informado.
A transparência pode ser aprimorada para tornar os dados simples, compreensíveis e capazes de, efetivamente, informar o eleitor. Não estamos tratando somente da transparência fiscal (as que encontramos na Lei de Responsabilidade Fiscal). Precisamos, também, de transparência no sentido de revelação real de informações capazes de influir nas decisões das pessoas. Transparência (e informação) como política pública.
Deve-se, pois, atender a dois pressupostos: (a) o Estado dará publicidade visando à fácil e rápida compreensão das informações pelos destinatários; (b) o Estado dará publicidade de informações para influenciar, beneficamente, as decisões individuais. Para que a compreensão aconteça, o Estado tem dever de educar os cidadãos e dever de incentivar a participação pública. Nessa linha de pensamento, sintetizo as algumas propostas para aprimoramento do controle social e da transparência:
(a) publicação de relatórios e gráficos de simples entendimento, com infográficos atrativos;
(b) oferta contínua de dados públicos, com identificação nominal de agentes públicos responsáveis por despesas públicas;
(c) meios de comunicação livres, capazes de explicar, com simplicidade, dados complexos;
(d) utilização eficiente da internet, com portais de rápido acesso, por meio de diferentes dispositivos.
Trata-se da procura da plena democracia. A transparência é elemento fundamental – é um dos elementos de estudo das democracias do mundo, segundo a The Economist (Democracy Index – https://www.eiu.com/topic/democracy-index). Mas ela só existirá se, além de as informações serem públicas, o agente controlador puder compreendê-las.
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