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Os maiores inimigos do governo de Jair Bolsonaro são a ponderação política, a racionalidade e o espírito científico. Vem daí um dos principais traços do governo Bolsonaro: o anti-intelectualismo.
A ponderação política ameaça o clima de polarização, do qual Bolsonaro necessita para se fortalecer, especialmente em momentos de pressão social e econômica, como o atual. A racionalidade coloca em xeque as falácias argumentativas que embasam o discurso do presidente ("se tomar vacina e virar jacaré, não tenho nada a ver com isso" ou "eu sou o maior acionista da Petrobras"). O espírito científico, por sua vez, não combina com o pensamento monolítico e com a adesão apaixonada, acrítica, que se exige do "verdadeiro patriota" bolsonarista.
O mais recente ato do anti-intelectualismo desse governo foi a tentativa de calar as vozes dissonantes no meio universitário. No início de fevereiro, o Ministério da Educação (MEC) emitiu um ofício para "prevenir e punir atos político-partidários nas instituições públicas federais de ensino". O documento nasceu da tentativa de estender para outros campi universitários a decisão de calar as críticas ao governo feitas por dois acadêmicos da Universidade Federal de Pelotas, um deles o pesquisador Pedro Hallal, que comanda o maior estudo epidemiológico sobre a covid-19 no Brasil.
O ofício do MEC, que considerava quaisquer manifestações políticas no âmbito universitário como "imoralidade administrativa", embasou sua tentativa de censura no meio acadêmico em uma recomendação emitida em 2019 pelo procurador-chefe da República de Goiás, Ailton Benedito de Souza.
O procurador é um apoiador declarado do presidente Bolsonaro e é conhecido no meio jurídico por suas ações anticiência. Recentemente, ele acionou judicialmente a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) por causa de um parecer técnico que afirmava não existir, ainda, tratamento precoce contra a covid-19.
O ofício do MEC — que após intensa reação contrária acabou sendo suspenso pelo ministério, na semana passada — ia contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2018 que assegurou a liberdade de expressão e de cátedra nas universidades.
Bolsonaro e seu entorno consideram que as universidades são um antro de esquerdistas e drogados. Ainda que o fossem — e não o são —, não poderiam, em uma democracia, ser submetidos à censura ou à mordaça administrativa.
Um ano atrás, quando a pandemia ainda estava só começando no Brasil, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) fez uma entrevista com Abraham Weintraub, então ministro da Educação, no YouTube, em que o filho do presidente disse que seu pai havia começado uma "revolução cultural" no país.
E essa revolução cultural, nas palavras de Eduardo Bolsonaro, serviria para quebrar o monopólio do conhecimento que domina as universidades, a internet e outros "lugares".
Propósito equivalente tinha outra revolução cultural, a de Mao Tsé Tung, o líder comunista Chinês, iniciada em 1966. Mao também via intelectuais, professores, jornalistas e artistas como ameaça. Havia uma estratégia por trás do anti-intelectualismo da Revolução Cultural chinesa: o objetivo era expurgar os moderados de qualquer posição de poder ou de influência.
Assim como hoje, no Brasil, qualquer um que faça críticas ao governo é chamado de comunista, durante a Revolução Cultural chinesa todos que não estivessem 100% alinhados com Mao eram classificados como "burgueses" e direitistas.
Para que o expurgo fosse completo, era preciso radicalizar. Só o fato de usar óculos ou de ler livros bastava para alguém virar alvo dos Guardas Vermelhos de Mao.
Na revolução cultural de Bolsonaro, também, a generalização é a regra. Professores universitários, jornalistas, médicos que não receitam cloroquina... são todos acusados de fazer parte de uma conspiração para enfraquecer e derrubar o governo.
Moderados são chamados de "isentões" ou marxistas disfarçados. Racionalidade passou a ser sinônimo de arrogância. O rigor científico é descrito como viés "ideológico", como afirmou recentemente, em artigo de jornal, um representante do Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão contaminado pela prática da bajulação política.
O anti-intelectualismo, portanto, nada tem a ver com conservadorismo ou com ser de direita. Tem a ver com intolerância a críticas e ao livre pensar. Um intelectual conservador ou um liberal de direita não se furta ao debate — ou melhor, não faz do debate a anulação do outro.
Como nos mostra o exemplo chinês, as revoluções culturais de cunho anti-intelectual não poupam nem seus próprios soldados: instalada a paranoia, companheiros olham com desconfiança uns para os outros e, a cada nova fase, quem antes expurgava pode ser o próximo a ser expurgado.
Mao deu de ombros para os mais de 500.000 chineses que morreram como consequência de sua Revolução Cultural. Ao final do processo, os jovens radicais que promoveram os expurgos foram banidos para os rincões do país, para não causar problemas.
De maneira semelhante, Bolsonaro dá de ombros para os 260.000 mortos pelo novo coronavírus no país, enquanto seu governo tenta, sub-repticiamente, calar aqueles que questionam sua maneira de lidar com a pandemia. Numa inversão de valores, combater as críticas torna-se mais importante do que combater o vírus.
Em ambos os casos, para Mao e para Bolsonaro, as vidas perdidas — premeditadas ou porque vieram a calhar — servem ao propósito da radicalização e de aprofundamento de um projeto político.
O anti-intelectualismo tem o caos como método.