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"Democracia" e "liberdade" eram palavras que saíam com muita facilidade da boca de Hugo Chávez, que governou a Venezuela de 1999 até sua morte, em 2013. Nem por isso pode-se dizer que seu governo foi democrático. Ao contrário, apesar de eleito de forma legítima, Chávez atuou ao longo dos anos para corroer as instituições democráticas, construindo, paulatinamente, um regime autoritário — que foi herdado e aprofundado por seu sucessor e atual ditador venezuelano, Nicolás Maduro.
"Liberdade" é uma palavra que sai muito fácil da boca do presidente Jair Bolsonaro. Ele diz que isso prova que ele é um democrata, ao contrário do que afirma a oposição ao seu governo.
Chávez dizia que havia liberdade de expressão irrestrita em seu governo. Bolsonaro também se diz um grande defensor da liberdade de expressão, e que a única ameaça a ela vem da Supremo Tribunal Federal (STF).
No início do seu governo, Chávez também colocava a culpa no Judiciário por tudo o que considerava que havia de errado em seu país. Atacou tanto a Suprema Corte venezuelana, fez tanta pressão sobre seus juízes, acusando-os de serem corruptos, que finalmente conseguiu mudar as regras para mudar sua configuração e nomear doze novos integrantes de uma só vez. A partir daí, dominou o Judiciário com magistrados chavistas ou submissos à sua vontade.
Chávez dizia que estava substituindo a democracia representativa das elites pela verdadeira democracia, a do povo.
De maneira similar, Bolsonaro se apresenta como o defensor da "liberdade do povo", contra "todos aqueles" que querem restringi-la. É um discurso populista, em que o conceito de "povo" é circunscrito à parcela da população que apoia o presidente e "todos" é a maneira genérica para se referir, enigmaticamente, às elites que integram os outros poderes da República, a imprensa, os banqueiros, etc.
Não existe apenas um conceito de liberdade e não é possível saber de qual deles se está falando sem analisar o contexto. Ao longo dos séculos, forças políticas antagônicas diziam lutar por liberdade.
No discurso de Bolsonaro, "liberdade" aparece como algo estranho às noções complementares de "liberdade negativa" e "liberdade positiva", definidas por Isaiah Berlin (1909-1997). A primeira "significa não sofrer a interferência dos outros". Na segunda, o indivíduo busca ser senhor dos próprios atos. A primeira depende dos obstáculos que se colocam diante do indivíduo; a segunda depende da sua capacidade de autorrealização. Em ambos os casos, os limites são as leis, que servem para que a liberdade de um não invada a do outro.
"Liberdade", no discurso de Bolsonaro, não é nem uma coisa nem outra. É a falsa promessa que ele dá aos seus seguidores de que, se estiverem ao seu lado e se lutarem para mantê-lo no poder, poderão fazer o que quiserem — ainda que seja algo que viole o direito de outros. É um estado hobbesiano, onde a lei do mais forte ou do menos tolerante impera.
"Se precisar, iremos à guerra", diz Bolsonaro, contra "os ladrões de liberdade".
Bolsonaro sequestrou o termo liberdade da mesma forma como sequestrou a agenda anticorrupção, aquela que ele nunca fez avançar.