O comentário virou meme, mas não deveria surpreender ninguém. Em videoconferência com os líderes do Brics (grupo de países composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o presidente russo Vladimir Putin disse que o brasileiro Jair Bolsonaro, ao enfrentar a contaminação por covid-19 e a pandemia no país, demostrou ter "as melhores qualidades masculinas e de determinação". Bolsonaro adorou o elogio e fez questão de publicar o vídeo com as falas do russo em uma rede social. Alguns analistas viram, no episódio, o sinal de uma aproximação entre Bolsonaro e Putin, como se fosse uma grande novidade.
Na verdade, não é. Bolsonaro e Putin vêm estreitando as relações já há algum tempo. Em deferência ao russo, Bolsonaro até deixou de fora um pedido para que seus pares apoiassem uma transição democrática na Venezuela em seu discurso durante uma reunião de cúpula do Brics, em junho do ano passado. "Não quis polemizar com Putin, uma potência nuclear", explicou Bolsonaro depois. "Eu estava na presença do presidente da Rússia e eu vi que não era o momento de ser um pouco mais agressivo."
Bolsonaro, em entrevista a jornalistas, apenas disse que pediu ajuda a Putin para "resolver a questão da Venezuela", sem dar detalhes. A cautela do presidente brasileiro se deve ao fato de a Rússia ser um dos países que apoiam o ditador venezuelano Nicolás Maduro — uma forma de exercer influência na América Latina e manter um bode incômodo no quintal dos Estados Unidos.
A Rússia exerce influência sobre a Venezuela por meio de uma parceria que inclui fornecimento de armamentos e de exercícios militares e um acordo que trocou uma dívida bilateral bilionária por petróleo.
No segundo semestre de 2019, quando o litoral nordestino enfrentava a tragédia ambiental do derramamento de óleo no mar, o governo brasileiro evitou qualquer menção à Rússia quando afirmou que o material tinha origem venezuelana e insinuou que teria sido vazado (ou propositalmente jogado no mar) de um "navio fantasma" de transporte de petróleo vindo da Venezuela.
Ocorre que empresas russas, inclusive a estatal petrolífera Rosneft, estão entre as principais operadoras desses "navios fantasmas", que transportam petróleo venezuelano fora do sistema de rastreamento marítimo para furar as sanções americanas ao produto venezuelano. É significativo que, em suas suspeitas de sabotagem ambiental venezuelana, o governo brasileiro tenha omitido os russos.
Porcos e adubo
Em termos comerciais, a Rússia é um relevante importador de carne suína e de outros produtos agropecuários brasileiros, mas está em um distante 33º lugar no ranking dos maiores destinos das nossas exportações. Já o Brasil importa fertilizantes e minérios. Os esforços para ampliar o comércio bilateral e para reduzir barreiras vêm de outras gestões e continuam no governo Bolsonaro. Mas há um novo produto com alta demanda na mesa de negociações.
Trata-se da vacina russa contra a covid-19, a Sputnik 5. Criticada por cientistas ocidentais por ter sido registrada na Rússia antes de completar as fases mínimas de testes, a Sputnik 5 tem, segundo seu fabricante, 92% de eficácia contra o novo coronavírus.
Na semana que passou, representantes russos apresentaram a sua vacina em reunião na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em Brasília. Em nível estadual, já há acordos para testar o imunizante russo no Brasil. O Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), por exemplo, corre para apresentar às autoridades federais o protocolo de validação para testes no estado.
É evidente o interesse do governo russo em colocar a sua vacina contra covid-19 no imenso mercado brasileiro, o segundo país com mais mortes pela doença no mundo, aproveitando a briga que se instalou entre governo federal e estado de São Paulo em torno da alternativa chinesa, a Coronavac, que está sendo testada pelo Instituto Butantan.
Carente de aliados
Por fim, há o contexto político que dá a Putin uma oportunidade de ouro para ampliar sua influência na América Latina, dessa vez junto ao antípoda ideológico de Maduro, Jair Bolsonaro. Refiro-me à vitória eleitoral do democrata Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos.
Brasil e Rússia estão entre os poucos países que ainda não reconheceram a derrota do presidente Donald Trump. O Brasil porque Bolsonaro considera-se aliado fiel de Trump e, portanto, abraça como verdadeiras as alegações de fraude eleitoral feitas por seu ídolo. E a Rússia porque Biden promete ser mais duro do que Trump com o governo de Vladimir Putin, cujo apoio às ditaduras de Bashar Al Assad, na Síria, de Alexander Lukashenko, em Belarus, e de Nicolás Maduro, na Venezuela, é uma pedra no sapato de qualquer presidente americano internacionalista.
Em artigo publicado no início deste ano, por exemplo, Biden escreveu que pretende "combater a agressão russa" e que, para isso, vai "manter as capacidades militares da Otan afiadas". A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) é uma aliança militar dos Estados Unidos e do Canadá com países europeus cujo fortalecimento passou longe de ser uma prioridade do governo Trump — para alegria de Putin, que a vê como uma ameaça.
No mês passado, em entrevista a uma TV americana, Biden chegou a dizer que considera a Rússia a "maior ameaça aos Estados Unidos". Putin reagiu criticando a "retórica anti-Rússia" de Biden, mas ponderou que era um bom sinal que o democrata prometera renovar um tratado de controle de armas nucleares entre os dois países.
O russo, porém, tem motivos de sobra para temer um repeteco do governo de Barack Obama, do qual Biden foi vice, que ergueu um série de sanções econômicas contra a Rússia por causa da invasão da Crimeia, na Ucrânia, em 2014.
A diplomacia russa entende o significado da ameaça feita por Biden, durante debate televisivo com Trump, de impor "consequências" econômicas ao Brasil por causa da política ambiental de Bolsonaro. E sabe do risco de o Brasil, se insistir na retórica de "pólvora em vez de saliva" em relação ao governo Biden, ficar ainda mais isolado no cenário internacional.
Putin é mestre em tirar vantagem de alianças estratégicas com governos de países isolados. Ele fez isso com a Síria de Assad e com a Venezuela de Maduro. Por ironia da geopolítica, está encontrando uma brecha para fazer o mesmo com o Brasil de Bolsonaro.
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