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"É simples assim. Um manda e o outro obedece", disse em outubro de 2020 o então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, que na véspera havia mandado suspender uma negociação com o Instituto Butantan, de São Paulo, para a compra da vacina CoronaVac. Bolsonaro não queria dar um trunfo político ao governo de São Paulo, apesar da urgência em se iniciar o quanto antes a vacinação contra covid-19 no país e, assim, salvar milhares de vidas.
Pazuello e sua gestão à frente da pasta mais necessária em plena pandemia eram considerados o suprassumo da submissão da racionalidade técnica e científica a interesses políticos imediatistas que se ancoram na ignorância e na crença em boatos.
Sob sua gestão, a contragosto se iniciou uma parceria da Fiocruz para a compra e produção da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca.
Sob sua gestão, a hidroxicloroquina e outros remédios ineficazes contra a covid-19 tornaram-se prioridade na política pública para a pandemia — e assim continuaram mesmo com estudos contrários ao chamado kit covid se avolumando.
Sob sua gestão, ofertas das Pfizer para a venda de mais uma opção de vacinas contra a covid eram ignoradas uma após a outra, até que a pressão da sociedade brasileira, com sua adesão mundialmente invejável à vacinação, se impôs.
Sob sua gestão, em um caso de responsabilidade compartilhada com autoridades regionais, o sistema de saúde do Amazonas colapsou pela falta de leitos e de oxigênio hospitalar, enquanto o Ministério pressionava médicos a adotar o falso tratamento precoce.
Quando Marcelo Queiroga assumiu o Ministério no lugar de Pazuello, dizia-se que nada podia ser pior do que a subserviência cega do general a Bolsonaro, mesmo que suas ordens pudessem potencialmente agravar a pandemia.
O presidente já reconheceu em mais de uma ocasião sua incapacidade de compreender temas médico-científicos. Se ao reconhecer sua ignorância, passasse a delegar as decisões referentes à pandemia a quem entende do assunto, Bolsonaro demonstraria virtude. Mas, no seu caso, o desconhecimento reverteu-se em arrogância.
O presidente pensa que saúde pública é uma questão de opinião. Se ele acha incompreensível que se vacine crianças e adolescentes, tenta encontrar empecilhos a essa medida — e replica desinformação a respeito como se estivesse em uma mesa de bar ou no grupo de zap da família — em vez de endossar e defender a política pública que seu próprio governo, por obrigação, aplica.
Quando Marcelo Queiroga assumiu, prometeu seguir a ciência na políticas para combater a pandemia. E prometeu ter a vacinação como principal estratégia para a volta da normalidade e do crescimento econômico.
Mas Queiroga é o ministro médico que atua no limiar entre ciência e negação da ciência.
Ele se equilibra entre a racionalidade que o cenário pandêmico exige e a irracionalidade do projeto político de seu chefe.
Em setembro do ano passado, quando, já autorizada pela Anvisa, a vacinação de adolescentes com 12 anos ou mais sem comorbidades estava prestes a ser iniciada nos estados, Queiroga suspendeu a campanha por ordem de Bolsonaro, sem qualquer respaldo técnico.
"Minha conversa com Queiroga não é uma imposição. Eu levo para ele meu sentimento, o que eu leio, o que eu vejo, o que chega a meu conhecimento", disse Bolsonaro, admitindo implicitamente que se orienta por boatos.
Algo semelhante ocorreu com a vacinação de crianças da faixa dos 5 aos 11 anos. A inclusão desse grupo era inevitável, mas Queiroga criou lá uma mise en scène para fazer crer, por meio de uma consulta pública, que o assunto foi debatido com a sociedade e que uma das teses defendidas pelo presidente, a da não obrigatoriedade, tem respaldo popular.
Nesses momentos, Queiroga diz amém, solta algumas afirmações dúbias, que servem tanto ao propósito de transparecer que está concordando com Bolsonaro quanto ao de deixar implícito que as decisões têm base científica. Passam-se alguns dias, a política entra nos trilhos — apesar de atrasos, claro, cujos prejuízos para a saúde pública dificilmente poderão ser calculados.
Queiroga, portanto, gerencia a pandemia e a campanha de vacinação por meio de mensagens ambíguas. Um dos exemplos recentes foi a visita que ele prestou, ao lado de Damares Alves, ministra da Família, aos parentes de uma menina de 10 anos de Lençóis Paulista (SP), que sofreu uma parada cardíaca. Os propagandistas antivacina precipitaram-se em associar o episódio ao fato de a menina ter sido vacinada com a primeira dose da Pfizer um pouco antes. Mas os especialistas concluíram que não há relação de causa e efeito entre o problema cardíaco e a vacina, e sim com o fato de que a paciente sofre de uma doença congênita que não havia sido diagnosticada.
Queiroga sabe que a vacina não tem nada a ver com o problema de saúde sofrido pela criança, mas prestou-se a endossar uma visita que serviu ao propósito de Damares, que é pré-candidata ao Senado por São Paulo, de lançar dúvida contra a vacinação de crianças indiretamente, por meio de sua conta no Twitter.
Durante a visita dos dois ministros a Botucatu (SP), onde a menina de Lençóis está internada, nenhuma das autoridades locais e nenhum dos médicos com quem eles se encontraram deram asas às teorias antivax. Queiroga sabe de tudo isso, assim como pode ser que Damares saiba, mas o que importa é o que eles dizem nas redes sociais e se, em público ou dependendo da plateia, eles estão endossando as crenças do presidente.
E agora, mais essa para a lista de mensagens ambíguas: o Ministério da Saúde, por meio de uma nota assinada pelo secretário Hélio Angotti, recusou-se a adotar no SUS a recomendação feita por relatório aprovado pela Conitec, um órgão consultivo do governo, de não se usar medicamentos ineficazes ou sem comprovação contra covid-19 em estágios leves ou iniciais, como hidroxicloroquina, ivermectina, entre outros.
O relatório foi elaborado durante quatro meses por um painel com mais de 20 dos principais especialistas do país na área. A nota técnica assinada por Angotti chega ao cúmulo de dizer que hidroxicloroquina funciona, e a vacina não.
Não foi só o protocolo de medicamentos para pacientes em estágio inicial e leve que Angotti descartou. Ele também jogou no lixo, com sua canetada, um importante protocolo, também aprovado pela Conitec, para conduta hospitalar contra covid-19.
Quando assumiu o Ministério, Queiroga chegou a colocar Angotti em sua lista de secretários a serem demitidos. Era um negacionista raiz à frente de uma secretaria importante, a de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos. Por sua proximidade com o presidente e com os filhos presidenciais, porém, Angotti ficou.
Há poucas semanas, o secretário demitiu uma auxiliar que votou a favor do relatório que ele agora derrubou.
Queiroga, que em outras ocasiões, como nos depoimentos à CPI da Covid, já deixou claro que considera que os medicamentos do chamado kit covid, inclusive a hidroxicloroquina, não são eficazes, e em relação à vacina já se posicionou favorável várias vezes, lavou as mãos para a nota técnica, que deveria se chamar nota leiga, de Angotti. Minimizou seu impacto e importância.
O ministro da Saúde tem planos políticos próprios. Uma disputa para o Senado ou para a Câmara dos Deputados pela Paraíba, com apoio de Bolsonaro.
Por isso segue com suas mensagens ambíguas, sua estratégia de moldar o que diz a depender de quem está ouvindo.
Por ser médico e por amparar-se em um discurso de defesa da ciência, mas ao mesmo tempo desdizer-se a todo instante para moldar-se às crenças antivacina e pró-cloroquina do governo, Queiroga é pior que Pazuello.