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A vacina ainda é a esperança mais palpável para enfrentar o novo coronavírus, mas não será suficiente para que nossas vidas voltem ao normal. Dúvidas quanto à longevidade da imunização e quanto à possibilidade de que, quando a maior parte da população estiver vacinada, o vírus terá mais dificuldade de circular (a chamada imunidade de rebanho), fazem com que essa seja a melhor aposta no momento, mas não a única. A busca pela cura da covid-19 continua.
Inúmeros medicamentos já existentes foram testados em caráter experimental em pacientes com covid-19. Alguns provaram-se úteis em casos moderados ou graves, mas os estudos para um tratamento precoce, capaz de evitar o agravamento da doença tão logo os primeiros sintomas aparecem, provaram-se decepcionantes.
Na falta de opções, medicamentos que haviam sido apontados como eficazes em testes de laboratório, mas não em humanos (como a ivermectina), ou que pareciam promissores em estudos preliminares, com poucas dezenas de pacientes (como a hidroxicloroquina), passaram a ser divulgados ou recomendados como panaceia por pesquisadores ou médicos mais afoitos.
E o que não faltam são os argumentos anedóticos de pessoas que dizem ter tomado algum desses remédios e se curado — esquecendo-se que, do ponto de vista estatístico, a esmagadora maioria dos pacientes de covid-19 curam-se naturalmente, mesmo que tenham tomado apenas chá de camomila.
Alguns governantes acharam por bem incluir esses medicamentos experimentais em suas políticas públicas para a pandemia. O Peru adotou a ivermectina, apenas para, em seguida, suspender sua recomendação, depois que se provou sem eficácia contra covid-19. Até o laboratório Merck, que fabrica a ivermectina, divulgou recentemente um comunicado alertando não haver indicação do antiparasitário contra covid-19.
O ex-presidente Donald Trump falou um tempo em hidroxicloroquina, mas não insistiu muito no assunto. Nem a FDA, a Anvisa americana, nem os CDC (Centers for Disease Control and Prevention), órgão do governo dos Estados Unidos de controle de doenças infecciosas) recomendam a hidroxicloroquina ou a cloroquina como a possível cura da covid-19.
Para provar a hipótese de que esses medicamentos são eficazes contra a covid-19, são necessários ensaios clínicos randomizados controlados, com participação de centenas de voluntários divididos em dois grupos de pacientes, um que recebe o remédio e outro que recebe um placebo (medicamento inócuo, feito, por exemplo, de farinha). Comparando-se a evolução dos pacientes dos dois grupos, por meio de modelos estatísticos, pode-se concluir se o medicamento tem efeito ou não.
No Brasil, a insistência do governo federal — e de muitos municípios, que se ampararam em protocolo do Ministério da Saúde sobre o chamado "tratamento precoce" — foi muito além do razoável.
Muito além do razoável significa além da metade do ano passado, quando um estudo "padrão ouro", ou seja, feito no Brasil com os melhores critérios científicos, não encontrou benefícios da hidroxicloroquina, com ou sem o antibiótico azitromicina, no tratamento de covid-19. Participaram do ensaio clínico randomizado alguns dos melhores centros médicos do país, como os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, em São Paulo, e o Moinhos de Vento, em Porto Alegre, entre outros.
Nenhum dos remédios indicados pelo Ministério da Saúde para "tratamento precoce" provaram-se eficazes em ensaios clínicos randomizados controlados, com uma amostragem significativa de pacientes.
Mas a busca pela cura da covid-19 não acabou. Há, inclusive, novos ensaios clínicos sendo feitos com alguns medicamentos do "kit covid" do governo brasileiro, para esgotar para valer as hipóteses, ainda que remotas, de sua eficácia. Se algo de positivo foi descoberto, tanto melhor.
Também há novos estudos mostrando resultados promissores, ainda que preliminares e inconclusivos, com outros medicamentos.
O anti-inflamatório colchicina é um deles. Dois estudos recentes procuraram verificar a eficácia do medicamento em pacientes com covid-19. Um deles foi feito por pesquisadores da Universidade de São Paulo com pacientes em estado grave. Em um ensaio clínico randomizado, a colchicina reduziu o tempo de internação. Mas a amostragem de 72 voluntários não é suficientemente significativa para que se possa confirmar a eficácia do medicamento.
O segundo estudo, também um ensaio clínico randomizado, foi feito no Canadá com mais de 4.000 voluntários que fazem parte de grupos de risco. Os pacientes receberam a colchicina ou um placebo tão logo apresentaram os primeiros sintomas. O índice de óbito ou hospitalização foi menor no grupo que recebeu o remédio.
A diferença para o grupo de placebo não foi tão muito significativa, mas o estudo aponta a possibilidade de que o anti-inflamatório pode ser uma alternativa para diminuir os riscos da doença ainda em seu início. Ou seja, uma espécie de "tratamento precoce", ainda que não a cura definitiva da covid-19. Os especialistas, porém, são cuidadosos. São necessários novos estudos para que a colchicina possa ser receitada no combate à pandemia.
Há, também, duas notícias recentes promissores vindas de Israel, onde foram testados dois medicamentos: o Allocetra e o EXO-CD24. Ambos melhoraram a capacidade de recuperação de pacientes em estado moderado ou grave de covid-19. Mas os estudos foram feitos com um amostragem pequena de pacientes (algumas dezenas, apenas), e novos ensaios clínicos são necessários para comprovar sua eficácia.
A ciência tem um tempo diferente do tempo da medicina. A primeira tem cautela, a segunda tem pressa.
A busca pela cura da covid-19 continua e há notícias promissoras a respeito. Mas transformar em instrumento político medicamentos que ainda não tiveram aval científico provoca graves efeitos adversos na população: desmonta a confiança no conhecimento técnico e leva os cidadãos a ter uma falsa sensação de segurança. É como entrar em um carro em alta velocidade sem saber que ele está sem freios.