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O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) retomado na quinta-feira (28) analisa em conjunto três ações que dizem respeito ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, de 2014. Esse artigo define quando uma empresa de internet pode ser responsabilizada por conteúdos de terceiros. Por esse artigo, isso só acontece quando elas deixam de remover uma postagem ou outro conteúdo em desrespeito a uma ordem judicial. O dispositivo dá liberdade para que as empresas criem suas próprias regras do que pode ou não ser publicado em seus sites, apps ou redes. E, quando alguém quer que algo seja excluído, entra com ação judicial para remoção imediata.
Os três casos julgados são relatados pelos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Edson Fachin. Dizem respeito, respectivamente, a uma mulher que acionou a Justiça contra um perfil falso no Facebook, a uma professora que pediu ao Orkut, uma rede que nem existe mais, para derrubar uma comunidade que foi criada para criticá-la, e a um conjunto de ações contra o WhatsApp, pedindo a derrubada do app de mensagens.
Como é possível colocar na mão de uma empresa privada decidir o que é um ataque à democracia ou o que é desinformação ou não? É uma responsabilidade muito grande. Já é difícil quando a decisão cabe à Justiça. Imagine deixar isso a cargo dos funcionários das redes sociais.
A tendência, pelo que se escutou dos ministros na sessão da quinta-feira passada, é que o artigo 19 do Marco Civil seja considerado inconstitucional. E que o STF passe a determinar que as empresas de internet sejam responsáveis por moderar os conteúdos que os usuários divulgam em suas plataformas (no juridiquês da corte, "dever de cuidado"). Existe também o risco de os ministros do STF criarem uma lista de conteúdos que precisam ser moderados ou evitados, obrigando as empresas de internet a assumir a responsabilidade de fazer esse filtro.
É uma situação paradoxal, porque o STF está basicamente tirando poder do Judiciário, que atualmente é o único que pode decidir pela remoção de conteúdo — feita a posteriori, como deve ser para preservar a liberdade de expressão. Primeiro a liberdade de expressão é exercida e depois se decide se um conteúdo é ofensivo ou não. Esse é o princípio básico do livre mercado de ideias. Evidentemente, há conteúdos que precisam ser evitados de antemão, como pedofilia, entre outros, e essa moderação a maioria das plataformas online já fazem.
Mas a sede do STF por moderação de conteúdo, como demonstram as declarações que seus ministros têm soltado, se estende a temas bem mais amplos e subjetivos, como fake news e ataques ao Estado Democrático de Direito. Como é possível colocar na mão de uma empresa privada decidir o que é um ataque à democracia ou o que é desinformação ou não? É uma responsabilidade muito grande. Já é difícil quando a decisão cabe à Justiça. Imagine deixar isso a cargo dos funcionários das redes sociais. É evidente que, para se precaver, eles vão pecar pelo excesso. Vão acabar censurando conteúdos que são, por exemplo, críticas legítimas a governos, a políticos ou à própria Justiça.
A sanha liberticida dos ministros do STF fica clara por algumas das frases escutadas na sessão de quinta-feira do julgamento. Dias Toffoli, por exemplo, reclamou que existe muita burocracia para a retirada de conteúdo, mesmo quando há ordem judicial. Alexandre de Moraes relacionou os atos de 8 de janeiro de 2023, com a invasão das sedes dos Três Poderes, ao que ele chamou de “total falência” do modelo de autorregulação das empresas de internet propiciado pelo Marco Civil, acusando-as até mesmo de “conivência”, obviamente se referindo à disseminação de discursos de ódio e de desinformação. O problema é que, aparentemente, os ministros acreditam que a solução para isso é instituir a censura prévia pura e simples, forçando as empresas a criar filtros para determinados tipos de conteúdo que são absolutamente complexos e subjetivos. Detalhe: a Advocacia-Geral da União, que representa o governo federal, se posicionou a favor da derrubada do artigo 19, colocando-se ao lado do STF pela censura.
Ainda mais espantosa foi a fala do ministro Luís Roberto Barroso, que deixou claro que caberá ao STF decidir sobre o assunto já que o Congresso se omitiu, deixando de legislar sobre o tema. É uma fala absurda, porque é uma confissão de Barroso de que o STF está assumindo para si uma atribuição que é do Congresso, ou seja, criar leis. E tão ou mais absurda também porque o Congresso não tem prazo para decidir sobre os temas. Cabe à sociedade fazer essa pressão. E já existe um projeto sobre o assunto no Congresso, o Projeto de Lei das Fake News, que deve ser discutido ainda no ano que vem. Aliás, nem o PL das Fake News vai tão longe a ponto de determinar que as big techs decidam o que é ataque à democracia ou não.
O que está prestes a acontecer com o Marco Civil da Internet, em julgamento no STF que será retomado nesta quarta-feira, é gravíssimo. Trata-se de uma consequência do limbo jurídico em que as fake news se encontram, mas isso não justifica que os ministros não-eleitos do STF criem regras que cabem ao parlamento discutir.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos