No discurso que coroou sua candidatura à reeleição como presidente dos Estados Unidos na Convenção Nacional Republicana, realizada na última quinta-feira (27), Donald Trump mencionou a China 16 vezes. O contraste com a solitária menção feita ao país por seu adversário Joe Biden, na Convenção Democrata celebrada na semana anterior, deixou muitos analistas surpresos. Sim, Biden, que foi vice-presidente dos EUA na gestão de Barack Obama, fez apenas uma única referência à China no discurso de lançamento de candidatura. A falta de ênfase é relevante pois o tema "China" terá grande peso na eleição do próximo presidente dos EUA.
Não é exagero. Segundo o instituto de pesquisas americano Pew Research Center, os americanos nunca tiveram uma imagem tão negativa da China quanto agora. A mais recente rodada de entrevistas, divulgada no final de julho, mostra que 73% dos cidadãos dos EUA têm uma visão desfavorável do país asiático, contra 22% que têm uma visão favorável (5% não opinaram). Em 2005, quando o tema entrou nas pesquisas do Pew, a situação era invertida: 43% tinham uma visão favorável e 35%, desfavorável (o restante não opinou).
A responsabilidade do governo chinês em lidar com o início da pandemia do novo coronavírus têm muito a ver com a piora significativa da imagem do país junto à população americana. Nada menos que 78% dos entrevistados acham que Pequim tem uma boa dose de culpa na proliferação global da doença.
Essa percepção é maior entre o eleitorado republicano, que vota majoritariamente em Trump, mas não é nada desprezível entre os democratas, que apoiam Biden. Aproximadamente oito em cada dez republicanos têm uma imagem ruim da China — a proporção é de sete em cada dez entre os democratas.
A diferença entre os dois polos políticos é maior quando se trata de optar pela melhor estratégia para fazer frente à China. Entre os republicanos, 66% querem políticas mais duras contra a China, contra 33% dos democratas que pensam o mesmo.
Ou seja, não há espaço para defender a China na campanha eleitoral deste ano nos Estados Unidos, obviamente marcada pelo tema da pandemia, de suas origens e de suas consequências.
Por esse motivo, Trump bateu com tanta insistência na tecla da China em seu discurso; tanto para lembrar que desde o início de seu governo vem adotando uma postura de confrontação diante dos chineses, quanto para acusar Biden de ser cupincha de Pequim, sem se esquecer, obviamente, de culpar o regime comandado por Xi Jinping de espalhar o vírus pelo mundo.
"A China dominaria nosso país se Biden fosse eleito", disse Trump em uma de suas 16 menções ao país. Biden, por sua vez, limitou-se a prometer que, caso eleito, reduzirá a dependência dos Estados Unidos em relação a remédios e equipamentos médicos chineses: "Nós vamos produzi-los aqui, nos Estados Unidos. Para que nunca mais fiquemos à mercê da China e de outros países estrangeiros para proteger nosso povo."
A referência isolada pode ser entendida como coerente com o fato de os eleitores democratas serem menos inclinados que os republicanos a exigir uma postura de confrontação com a China — em que pese a imagem crescentemente negativa que possuem do país asiático.
Mas não é só isso. Para Biden, não interessa reforçar a ideia de que a culpa pelos efeitos desastrosos da pandemia na saúde pública (183.000 mortos) e na economia (aumento de quase 7 pontos percentuais na taxa de desemprego) é da China. Do ponto de vista da estratégia eleitoral, o mais lógico é apontar a incompetência do governo Trump em lidar com todos esses problemas.
Ou seja, Biden não ganha votos com a ideia de que a China é a culpada pela pandemia, mas sim quando expõe o fracasso de Trump em combatê-la.
Isso não significa que, uma vez eleito presidente dos EUA, Biden seria melhor para os interesses da China do que Trump.
As relações entre China e Estados Unidos no mundo pós-pandemia serão tensas com um ou com o outro. Esse é o cenário natural em um contexto de ascenção econômica e geopolítica da China diante de uma superpotência americana em declínio, mas ainda imbatível em diversos campos, em especial no militar.
O programa de governo democrata prevê endurecimento nas relações com a China em diversos pontos. Uma das diferenças na comparação com as políticas de Trump, porém, seria a maior propensão de Biden em restaurar as alianças com outros países dispostos a fazer frente à ascensão chinesa.
E, como observou o historiador britânico Niall Ferguson em artigo recente, uma escalada para um conflito armado sob Biden seria condizente com o histórico dos presidentes democratas — um desenlace que, obviamente, não se deveria desejar.
O melhor que o Brasil pode fazer nesse momento em que o destino do cargo presidencial nos Estados Unidos está em disputa é ficar na sua. Biden tem grandes chances de se eleger presidente dos EUA e posicionar-se a favor de seu adversário não trará, obviamente, nenhuma vantagem futura para a diplomacia brasileira.
Tampouco faz sentido tomar um lado na disputa de cachorro grande entre americanos e chineses. O Brasil é, no máximo, uma potência regional e possui baixa capacidade de influir nessa briga — além de termos muito a perder do ponto de vista comercial.
É hora de recostar-se na poltrona e assistir aos próximos lances do jogo antes de fazer apostas arriscadas.
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