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Muito já se falou sobre como ex-presidente americano Jimmy Carter, morto aos 100 anos de idade neste domingo (29), obteve mais reconhecimento após deixar a Casa Branca do que durante seu mandato. E não porque houve uma revisão histórica do seu legado presidencial, mas exatamente por aquilo que ele fez fora do cargo, inspirado pelo pouco que deu certo nele. Em 1978, como presidente, Carter mediou a paz entre Israel e Egito — um feito que dura até hoje — e demonstrou, com isso, o poder da moderação, da racionalidade e da disposição ao diálogo na política. Depois de deixar a presidência, em 1981, teve muito tempo para se dedicar à promoção da democracia e à mediação de conflitos mundo afora, criando já no ano seguinte, para esse fim, o Centro Carter, com sede em Atlanta, na Georgia. Foi esse ativismo pelo entendimento mútuo e pela democracia que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz em 2002.
Um exemplo de como o Centro Carter atuava pode ser verificado na Venezuela chavista. Apesar de ser um instituto com sede nos Estados Unidos e de ter sido criado por um ex-presidente americano, o Centro Carter era uma das únicas organizações que tinham a anuência do coronel Hugo Chávez e do seu sucessor, Nicolás Maduro, para atuar na observação independente das eleições no país.
Essa relação com a Venezuela começou em 1996, antes de Chávez assumir a presidência (o que ocorreu três anos depois), quando o Centro Carter, em parceria com o Ministério da Saúde do país sul-americano, começou um programa de combate à onchocerciasis, conhecida como cegueira dos rios ou mal do garimpeiro, uma doença causada por parasitas que afeta a pele e os olhos do infectado. O programa é desenvolvido junto a comunidades ianomâmis da Venezuela, próximo à fronteira com o Brasil.
E não porque houve uma revisão histórica do seu legado presidencial, mas exatamente por aquilo que ele fez fora do cargo, inspirado pelo pouco que deu certo nele
O Centro Carter foi convidado em 1998 para enviar observadores para atestar a lisura das eleições presidenciais daquele ano, vencidas por Chávez, e a partir de então analisou o processo eleitoral no país muitas outras vezes. Em 2002, novamente ganhou pontos com o chavismo ao mediar a crise política que se seguiu a um golpe fracassado contra Chávez. Em parceria com a ONU e com a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Centro Carter convenceu Chávez a realizar um referendo dois anos depois para dar aos venezuelanos a chance de tirá-lo ou não do poder. Chávez venceu o referendo, que contou com a validação do Centro Carter, apesar de sérias contestações sobre a credibilidade do processo.
A oposição venezuelana, com uma boa dose de razão, muitas vezes se viu frustrada pelo comedimento do Centro Carter em apontar problemas nos sempre injustos processos eleitorais venezuelanos conduzidos pelos governos chavistas. Mas exatamente por essa avaliação sempre ter sido comedida, sem apontar fraude a toda hora, o impacto do relatório do Centro Carter sobre a última eleição, em que Maduro se declarou vencedor, acabou sendo muito maior.
Maduro, em sua preparação para roubar na cara dura o pleito realizado em julho passado, recusou a presença de quase todos os observadores internacionais. Os primeiros a serem barrados foram os auditores da União Europeia, por conta das críticas dos países do bloco às violações dos direitos políticos da oposição venezuelana. O Centro Carter foi a única organização internacional que recebeu autorização para acompanhar a votação. Dias antes do pleito, o ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino, recebeu os técnicos do instituto americano e declarou: "O centro conquistou prestígio em todo mundo não apenas em tarefas de eleições, mas também em tarefas para promover a democracia."
Mas o elogio do governo chavista durou pouco. Após a eleição fraudulenta, em que o órgão eleitoral venezuelano se recusou a apresentar os boletins de urna para confirmar a autodeclarada vitória de Maduro, o Centro Carter anunciou que a eleição "não atendeu aos padrões internacionais de integridade e não pode ser considerada democrática". E mais: "A falha da autoridade eleitoral em anunciar resultados desagregados por seção eleitoral constitui uma grave violação dos princípios eleitorais". O ditador Maduro, é claro, não gostou, e acusou o Centro Carter de já ter o informe escrito antes mesmo das eleições.
Mas o mais importante foi o papel desempenhado pelo Centro Carter em outubro, quando apresentou na OEA as provas de que o verdadeiro vitorioso nas eleições da Venezuela foi o opositor Edmundo González Urrutia. Tratam-se das atas das urnas que haviam sido reunidas por voluntários em mais de 80% das sessões eleitorais e que haviam sido divulgadas online pela oposição. Apesar de essas evidências já serem de conhecido público, a auditoria independente feita pelo Centro Carter para atestar a veracidade dessas atas foi essencial e tornou a fraude eleitoral venezuelana um fato incontestável. Na reunião na OEA, a conselheira sênior do Carter Center para a América Latina, Jennie Lincoln, chegou a mostrar exemplares originais dos boletins de urna que compõem o conjunto de provas da vitória da oposição.
Em tempo: em novembro de 2022, o Centro Carter atestou a lisura da eleição presidencial brasileira, após auditoria nas urnas eletrônicas, na análise do arcabouço jurídico-eleitoral e da observação do processo de votação em si. A organização já participou como observadora independente em 124 eleições em 43 países.