Ninguém se escuta, ninguém se entende. E todos só cabem em uma ou em outra caixa. Uma crítica específica a uma ação do governo de Jair Bolsonaro é o que basta para ser enquadrado na categoria dos "comunas". E "gado" é como você será chamado se manifestar a menor concordância que seja com essa ação. A polarização não permite nuances. Mas a verdade é que a maioria dos que são enfiados no primeiro grupo nada têm de comunistas, assim como os que são colocados na segunda categoria raramente são seguidores bovinos, ininteligentes, do bolsonarismo.
Se fosse apenas pelos rótulos, mas isso é o de menos. O problema é que, uma vez enquadrados, encaixotados, os cidadãos de um lado ou de outro simplesmente param de se ouvir e, o que é pior, deixam de enxergar o que podem ter em comum.
Ambos os lados saem derrotados. Por mais difícil que às vezes seja aceitar, não existe ideia ou visão de mundo que não possa ser aprimorada. Sem o contraditório, sem críticas, não se dá um passo adiante sequer. Em última instância, quem perde com essa polarização, com esse diálogo no vácuo, é a sociedade brasileira como um todo.
Anos atrás, entrevistei William Ury, especialista em negociação da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. A mensagem que ele passou naquele momento vale muito para realidade atual. A começar pelo diagnóstico que ele fez da contemporaneidade. Para ele, as sociedades verticais estão dando lugar a sociedades cada vez mais horizontais, ou seja, é crescente o número de pessoas com voz ou capacidade de influenciar o debate público e as decisões importantes.
É a democracia em expansão. Esse fenômeno, nessa fase de transição, de adaptação, aumenta os conflitos. Precisamos aprender, como indivíduos e como sociedade, a lidar com esse novo poder pulverizado.
Os conflitos e a incapacidade de compreensão mútua residem não na dificuldade em lidar com os outros, mas em lidar consigo mesmo, disse-me Ury. É uma luta interna. Estamos tão focados em nós mesmos que não enxergamos ou escutamos os outros.
O primeiro passo em uma negociação ou reconciliação, segundo Ury, é colocar-se no lugar do outro, entender o que ele quer. O segundo passo é descobrir quais são os seus "interesses não declarados".
Não deveria ser tão difícil aplicar esses princípios no Brasil de hoje.
Vejamos o exemplo da política externa brasileira. O chanceler Ernesto Aráujo e seus críticos podem discordar em muita coisa, mas têm mais em comum do que imaginam. A começar pelo desejo de ampliar os mercados para exportação de produtos brasileiros ou pelo diagnóstico que se faz do regime ditatorial da Venezuela.
As explicações dadas por Araújo na Comissão de Relações Exteriores do Senado são um exemplo de como bolsonaristas e seus críticos podem começar a sanar as diferenças observando as semelhanças. O diagnóstico que o chanceler fez da natureza do regime de Nicolás Maduro, de seus abusos e da perseguição da oposição, é correto. Isso não quer dizer que a maneira escolhida para lidar com o problema seja a mais eficaz.
Araújo erra ao considerar que quem questiona sua abordagem ao desafio venezuelano seja marxista ou amigo de ditadores. Trata-se de uma ilação hipócrita, pois sua diplomacia, assim como a de governos anteriores, não deixa de se relacionar com tiranos de outros países. O problema é que não há sinal de que a situação política na Venezuela esteja melhorando. Por que não escutar o que os críticos da política externa bolsonarista têm a dizer sobre o assunto?
A questão ambiental é outro ponto em que a polarização não nos leva a lugar algum, só trazendo prejuízos ao Brasil. Ambientalistas poderiam começar admitindo que parte do que o governo diz a respeito das leis tem fundamento, ou seja, que algumas regras são exageradas, punindo produtores por atitudes com baixo impacto na natureza. Também poderiam ajudar fazendo esclarecimentos, no exterior, sobre as práticas que levam ao desmatamento da Amazônia sem maniqueísmos e sem incentivar boicotes internacionais. O Código Florestal brasileiro é realmente um dos mais restritivos do mundo e muitos produtores rurais fazem das tripas coração para segui-lo à risca.
Já as autoridades ambientais federais poderiam escutar os argumentos de que a retórica de negação do problema das queimadas ou a recusa em admitir que poderiam fazer mais para controlá-las causam danos à imagem do Brasil e prejudicam interesses nacionais (dando desculpa, por exemplo, para decisões protecionistas de outros países ou para o veto de acordos de livre comércio). Também não custa considerar que muitas ONGs ambientais podem ser parceiras na busca por um equilíbrio entre proteção ambiental e atividades econômicas e que tratá-las a priori como inimigas não é nada produtivo.
Talvez seja pedir demais que, em um contexto político com tanta polarização, os brasileiros comecem a se escutar, a procurar entender o que querem aqueles com diferentes posicionamentos. Mas é possível começar a fazer isso debaixo, em nível familiar, entre amigos, e aos poucos estender a prática para as redes sociais e para o debate público.
Ao se indignar com a opinião colocada por alguém, antes de partir para os xingamentos, comece com uma pergunta. Tente entender como a pessoa pensa e quais são os argumentos dela. Por que ela acha que aquilo é o certo? Haverá algo com que vocês podem concordar?
Vamos começar. Não esperemos pelos políticos: esses são os únicos que ganham com os conflitos, com a polarização estúpida.
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