Que ninguém ouse afirmar que Lula iniciou uma crise diplomática com Israel de maneira inadvertida, sem querer. Ele sabia muito bem que sua declaração comparando a ação militar israelense na Faixa de Gaza com o Holocausto teria impacto. Já tinha tido um gosto da repercussão negativa que esse tipo de comentário provocaria quando acusou, em declarações anteriores, o governo israelense de estar cometendo um genocídio em Gaza. O presidente brasileiro dobrou a aposta. E o seu prêmio veio na forma de elogios e vivas não só da esquerda radical — e antissemita — do Brasil, mas também de líderes de países emergentes, muitos dos quais autocráticos. São, essencialmente, países alinhados ou em processo de alinhamento com a China no cenário internacional.
Mesmo aqueles que não se manifestaram publicamente em apoio a Lula, como os governantes de países árabes, da África ou da própria China, certamente comemoraram em silêncio que o brasileiro tenha resolvido se jogar nessa fogueira diplomática, porque isso sinaliza que ele está disposto a acelerar seu próprio alinhamento externo a esse grupo de países.
Aparentemente a diplomacia lulista considera que não há espaço para moderação no mundo de hoje.
Ao contrário do que costuma espalhar a diplomacia lulista aos quatro ventos, a nova ordem global que está se formando nessas primeiras décadas do século XXI não é multipolar, ou seja, com múltiplos polos de poder, tendo o Brasil na posição de liderança de um deles. Trata-se, isso sim, de uma ordem bipolar, com os Estados Unidos e seus aliados de um lado e a China e seus liderados de outro. Alguns analistas chamam a isso de Segunda Guerra Fria (a primeira, claro, teve como polos competidores os Estados Unidos e a União Soviética).
O Brasil não tem a menor necessidade de buscar alinhamento com um polo ou com o outro de forma automática. A China e os Estados Unidos são os dois maiores parceiros comerciais do Brasil e com os quais mantemos parcerias proveitosas em diversas áreas. Nas discussões globais, podemos ter eventualmente algo em comum com os chineses, enquanto em outras nossa posição pode ser aproximar mais daquela defendida pelos americanos. Ser disputado por China e Estados Unidos, no campo político e econômico, pode ser ótimo para a defesa dos interesses brasileiros.
A melhor estratégia para o Brasil, no atual estágio da Guerra Fria entre China e Estados Unidos, é manter uma "equidistância pragmática" entre os dois. A expressão não é usada aqui por acaso; é a mesma que serviu para definir a busca por autonomia externa do governo Getúlio Vargas durante a disputa entre Estados Unidos e Alemanha no início dos anos 40. Claro, houve um ponto a partir do qual o Brasil se viu obrigado a se posicionar, alinhando-se com os Estados Unidos na guerra contra os nazistas. Pelas circunstâncias, escolheu o aliado certo. Mas, no caso da disputa atual entre americanos e chineses, estamos longe disso.
A diplomacia brasileira, porém, tem pressa em estabelecer um alinhamento automático com um dos polos — e opta por fazê-lo justamente com a China, o que significa estar no mesmo bloco que a Rússia, o Irã, a Venezuela etc. Tudo bem fazer parte do Brics, o grupo de nações emergentes, até pouco tempo atrás restrito (com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O problema é encampar, no âmbito do Brics, propostas que não favorecem os interesses brasileiros ou mesmo diluem o poder de voz brasileiro, como expandir demais o número de participantes, agregando principalmente nações com regimes totalitários, ou engajar-se em medidas para desdolarizar o comércio mundial, o que apenas serve aos propósitos imediatos de chineses e russos.
Cada vez mais, Lula sinaliza seu alinhamento com Vladimir Putin, o ditador russo que ameaça a Europa.
Também falta equilíbrio na postura brasileira em relação à agressão russa na Ucrânia, algo que viola a lei internacional e impacta profundamente os países da União Europeia, também parceiros importantes do Brasil. Cada vez mais, Lula sinaliza seu alinhamento com Vladimir Putin, o ditador russo que ameaça a Europa e que tem um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil é signatário, por suspeita de crimes de guerra. Como mostrou reportagem da Gazeta do Povo, o governo Lula está adiando os trâmites para receber uma visita do chanceler ucraniano, enquanto já aceitou receber duas vezes seu equivalente (e inimigo) russo, Sergey Lavrov.
Tem mais por vir. Lula deve se encontrar pessoalmente com Putin em outubro, durante encontro de cúpula do Brics que será sediado na Rússia. E, em novembro, quando o Rio de Janeiro será palco da reunião dos chefes de Estado e de governo do G20, o grupo dos 20 países mais ricos do mundo, existe a possibilidade de Lula aceitar a vinda de Putin, recusando-se a cumprir a obrigação de prendê-lo. Se fizer isso, criará uma saia justa com o americano Joe Biden e com os governantes europeus.
Os esforços de Lula em agradar Putin são de amargar. O último ocorreu no mesmo dia em que ele se apressou em acusar Israel de estar agindo como Hitler: perguntado sobre o trágico destino do opositor russo Alexei Navalny em uma colônia penal no Ártico, o presidente brasileiro disse estranhar a pressa em "acusar alguém" pela morte do adversário de Putin. Todos sabemos de quem é a culpa, direta ou indiretamente.
Ao elevar o tom contra Israel — que deve, sim, ser pressionado a evitar a morte e o sofrimento de civis em sua incursão contra o Hamas em Gaza, mas sem ofender a memória das vítimas do Holocausto —, Lula mais uma vez colocou os pés no bloco de países que está se aglutinando em torno da liderança da China.
A guinada decisiva será dada a partir do ano que vem, caso o ex-presidente Donald Trump seja eleito para mais um mandato nos Estados Unidos. Inevitavelmente, Lula vai polarizar com Trump da mesma forma que Bolsonaro polarizou com Biden. E, como Trump tem uma postura de confronto com a China (ainda que fale fino com a Rússia), a tendência é a diplomacia lulista acabar se aproximando ainda mais, politicamente, de Pequim.
É muito cedo para tomar partido, mas aparentemente a diplomacia lulista considera que não há espaço para moderação no mundo de hoje. Esse foi o relato feito pelo ministro do STF André Mendonça, na semana passada. Durante discurso em culto religioso, Mendonça relatou uma conversa que teve com o embaixador brasileiro em Israel, no mês passado. Mendonça disse que questionou o embaixador sobre a necessidade de o país manter uma posição de neutralidade em relação à guerra em Gaza, e se isso não seria um melhor caminho para o Brasil ser um agente da paz. Ao que o embaixador teria respondido: "No mundo de hoje não há espaço para o cinza. Ou é preto ou é branco, e o país tomou sua posição" — referindo-se ao fato de o Brasil ter apoiado a petição da África do Sul sobre genocídio em Gaza junto à Corte Internacional de Justiça.
É preferível, sempre, que ministros do STF se abstenham de fazer intervenções na política, ou mesmo na política externa. Mas, feita essa ressalva, se o relato de Mendonça estiver correto, temos aí uma confirmação de que o Brasil de Lula já escolheu um lado na nova ordem global bipolar.
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