O presidente Jair Bolsonaro com Faísca: vacina obrigatória, só no cachorro| Foto: Reprodução/Instagram
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"Uma questão epidemiológica de grande interesse é que o tipo de medida preventiva que precisa ser adotado para controlar a infecção respiratória recai sobre a pessoa que já está contaminada, enquanto aqueles que estão suscetíveis a contrair a doença pouco podem fazer para se proteger." Esse é o trecho de um artigo publicado na revista Science, sob o título "As Lições da Pandemia", pelo major George A. Soper, do corpo sanitário do exército americano. O dilema apresentado é como, na ausência de meios para proteger quem ainda não pegou a doença, isolar os possíveis transmissores, ainda que apresentem apenas sintomas leves de gripe. O artigo do major Soper foi publicado em 30 de maio de 1919 e tratava, evidentemente, da Gripe Espanhola. Se ele estivesse escrevendo nos dias de hoje, poderia colocar na equação pelo menos uma forma de proteger os saudáveis na pandemia, naquela época impensável: a vacinação. Os protagonistas da crise da vacina que se instalou na política brasileira fariam bem em ler o texto do major Soper com esses olhos.

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Se há 100 anos os médicos e gestores públicos enfrentavam o dilema de como isolar os doentes para proteger os sadios da contaminação pelo vírus influenza, na atual pandemia o buraco se provou mais profundo. Sorrateiro, o novo coronavírus é transmitido também por pessoas assintomáticas, razão pela qual muitos epidemiologistas defenderam o isolamento horizontal da população. No Brasil, na esfera pública, essa medida esteve longe de ser um consenso, como sabemos. Mas isso é outra história. O problema, agora, é a crise da vacina.

Hoje, é muito mais factível pensar em proteger a população que ainda não foi infectada do que era na pandemia do influenza em 1918/1919. Só se começou a vacinar comercialmente contra a gripe, nos Estados Unidos, duas décadas depois.

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Quando a pandemia do novo coronavírus começou, dizia-se que uma vacina levaria pelo menos um ano e meio para ser desenvolvida e testada. Há indícios de que esse tempo será reduzido consideravelmente, graças a uma das maravilhas do capitalismo: a livre concorrência entre empresas.

Das centenas de vacinas que começaram a ser desenvolvidas contra a covid-19, as dos laboratórios AstraZeneca e Sinovac estão entre aquelas em estágio mais avançado. Com a primeira, o governo federal firmou acordo para testes, compra de doses e produção nacional. É a "vacina do Bolsonaro". A segunda entrou em parceria com o Instituto Butantan, do governo do estado de São Paulo. É a "vacina do Doria".

Nenhuma das duas merece receber essas alcunhas, que apenas servem para politizar uma questão que deveria ser puramente técnica. Ambos, o presidente Jair Bolsonaro e João Doria, governador de São Paulo, têm responsabilidade nessa politização.

Doria está certo em querer que o Ministério da Saúde inclua a Coronavac, a vacina que está sendo testada pelo Instituto Butantan, em um programa nacional de imunização contra covid-19, caso se prove eficaz e segura. Mas está errado ao insistir que a vacinação será obrigatória. Isso apenas desvia a atenção do objetivo que realmente importa agora, que é tornar a vacina disponível para os grupos populacionais mais vulneráveis tão logo seja aprovada. Seria a chance de o ministro da Saúde Eduardo Pazuello — que não entende nada de saúde, mas tudo de logística — mostrar a que veio.

Bolsonaro, por sua vez, está certo quando diz que ninguém deve ser obrigado a tomar vacina. O Estado de fato não pode entrar na casa das pessoas e forçá-las a se imunizar, assim como os médicos não podem ser obrigados a receitar a vacina. Caberá ao governo, isso sim, fazer programas de conscientização e informar corretamente a população sobre os benefícios e eventuais riscos da vacinação.

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Justamente por isso, Bolsonaro está errado em lançar dúvidas contra a Coronavac, com o argumento de que se trata de uma "vacina chinesa", originária de um país ditatorial. Primeiro, porque a vacina está sendo testada por cientistas brasileiros e só será liberada para uso em massa se for considerada segura e eficaz pelos órgãos nacionais competentes. Segundo, porque até a "vacina de Bolsonaro", desenvolvida pela AstraZeneca, depende de insumos chineses. Mais do que isso, é muito provável que ao menos parte das doses compradas pelo governo federal virá da China: a AstraZeneca firmou em agosto uma parceria com a empresa Shenzhen Kangtai Biological Products para a produção do imunizante em território chinês.

Doria faz demagogia política ao levantar a lebre da obrigatoriedade da vacinação contra covid-19 — uma discussão inócua quando sequer se sabe se haverá doses disponíveis para todo mundo. E Bolsonaro faz demagogia política ao questionar a vacina que está sendo testada em São Paulo, apenas porque foi desenvolvida por um laboratório chinês.

Ambos, dessa forma, contribuem para a desinformação, causando confusão entre os brasileiros. Quando as vacinas estiverem prontas, as autoridades sanitárias terão trabalho dobrado para desfazer as desconfianças geradas pelas declarações de Doria e de Bolsonaro.

E toda essa crise da vacina para quê? Apenas para alimentar uma rixa política e para preparar o terreno para a eleição presidencial de 2022.

Esse não deveria ser o foco. Como escreveu o major Soper em 1919, a pandemia "deve ser controlada por procedimentos administrativos e pelo exercício de medidas de autoproteção". Doria e Bolsonaro têm a chance de usar a administração pública para entregar à população uma maneira de se proteger, por meio da imunização. Colocar seus interesses políticos acima do bem coletivo, criando uma crise da vacina, não é o caminho.

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